quarta-feira, março 09, 2005

CANTÕES, COCADAS GRANDE PONTO DJALMA MARANHÃO

CANTÕES, COCADAS
GRANDE PONTO DJALMA MARANHÃO





POEMAS, ESCREVIVÊNCIAS
CRÔNICAS, FATOS, GENTE
DO GRANDE PONTO


ANTOLOGIA


EDUARDO ALEXANDRE
Edições Galeria do Povo









Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão – Antologia.



Organização, Planejamento, Apresentação, Digitação e Revisão
Eduardo Alexandre de Amorim Garcia




Edições Galeria do Povo



Natal/RN
27 de novembro de 2002
1ª Edição




Dedico a todas as almas
que ainda vagam
convergentes e
conversantes
por esses Cantões
do Grande Ponto,
Bairro do Alto,
Cidade Alta.

Dedico
a todos os que compõem
esta festa
lítero
refolesianas
páginas
alma de Natal

meus agradecimentos
e minhas desculpas
por excessos
e invasões

a compreensão da História
na visão de muitos
enseja
dimensão maior



Dedico à memória
de
Berilo Wanderley
Newton Navarro
João Cláudio de Vasconcelos Machado
Djalma Maranhão
Edgar Barbosa
Luís da Câmara Cascudo
Luís Carlos Guimarães
Zila Mamede
Maria Oliveira de Barros
Ferreira Itajubá
Othoniel Meneses
Lourival Açucena
Jorge Fernandes

Antônio de Amorim Garcia
José Gervásio de Amorim Garcia
Coronel Odilon de Amorim Garcia, meu bisavô
José Alexandre de Amorim Garcia, meu avô
Representantes do Cantão
canguleiro
da Botica da Rua do Commercio,
Ribeira;

À memória de
Rodolfo Augusto de Amorim Garcia,
Do Cantão da Academia Brasileira de Letras;


À memória de

José Alexandre Odilon Garcia,

unanimidade de benquerença
xaria e canguleira,
meu pai,
homem da Ribeira,
do Grande Ponto,
da Cidade do Natal;


A
Odilon, meu tio;


Aos meus filhos José Odilon e João Arthur;
A Germana;




E, especialmente, à minha mãe,
Isabel.


À Serenata do Pescador;
ao Amor de Porangaba.







HISTÓRIA DA CIDADE DO NATAL
DEÍFILO GURGEL

A Praça André de Albuquerque
Viu a cidade criança.
A Catedral sabe histórias
que nenhuma História conta.

Caminhos de buscar água
- rua Santo Antônio antiga.
Na margem verde do Baldo
Dorme a Santa Cruz da Bica.

Xarias e Canguleiros
Descansam no chão da História,
depois de tantas batalhas
e tantas perdidas glórias.

Itajubá, nas serestas,
incendiava o luar,
com seus versos delirantes
de vento leste e de mar.

Auta de Souza morrendo
na Avenida Rio Branco,
Lírio moreno, entre rosas
Sangüíneas e lírios brancos

Praieiras de Othoniel
tiritando na alvorada,
entre acordes e soluções
de violões em serenatas.

No velho Paço da Pátria,
de patrióticas feiras,
a manhã passa lenta
sobre as louças das louceiras.

O trem passando na ponte,
Sobre o rio Potengi.
Natal, perdi-me ou achei-me,
Depois que te conheci?

Os limites da cidade
eram quatro: balaustrada
de Petrópolis, Ribeira,
Alecrim, Tirol. Mais nada.

Na calçada do Rosário,
Cascudo e Sílvio Pedroza
colhiam o sol do crepúsculo
como alguém colhe uma rosa.

A cidade era uma Festa,
No Natal e no São João,
entre os sonhos a igualdade
De Djalma Maranhão

O bondinho do Tirol
Cochilava em cada esquina.
Numa delas, descobri
Teu sorriso de menina.

Depois, o tempo passou,
o bonde não voltou mais
não voltou mais a cidade
do meu tempo de rapaz.

Agora, a cidade antiga
cresce no tempo e no espaço
e o progresso a moderniza
a cada dia que passa.

Mas os sonhos continuam
os mesmos sonhos de outrora,
acalentando a esperança
que renasce a cada aurora.

Natal – maio de 1989.




Apresentação

Não poderíamos chegar ao coração da cidade sem antes traçarmos um perfil da História da cidade do Natal. Também não poderíamos situar o Grande Ponto sem falarmos da Ribeira e da própria Cidade Alta, onde ele está inserido.
Esses Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão não tem a pretensão de revelar todas as estórias, acontecências, tipos, fatos, mistérios do Grande Ponto. Seria um trabalho impossível.
Abrimos esta Antologia com um texto do nosso pai, José Alexandre Odilon Garcia, homenageado com seu nome dado ao Largo Boêmio da Ribeira, na rua Chile. De Zé Alexandre, como era conhecido, trazemos um texto inédito, que, durante anos, ele rebuscou, quando, nos anos sem turismo, buscava criar um Guia da Cidade do Natal.
O texto contextualiza-se para situar o leitor, de forma rápida, quanto à História da cidade. E readaptamos um outro texto seu, que abriu as suas “Acontecências e Tipos da Confeitaria Delícia”, de 1985, onde ele situa a Ribeira e a Cidade Alta nos idos de 40.
Trazidos esses textos de José Alexandre, trazemos, como forma de homenagem, uma abertura para este livro: o poema História da Cidade do Natal, de Deífilo Gurgel. Ele situa poeticamente, de uma maneira ingênua e gostosa, a Natal de todos os tempos.
Contar com a colaboração de todas essas almas que desfilam por essas páginas daqui em diante, nos dá uma dimensão de universo do que foi o Cantão do Grande Ponto, e foi a isso que quisemos chegar.
Cascudo conta-nos a exata História: um ponto comercial, o Café Grande Ponto, do português Custódio de Almeida, situado hoje onde está erguido o edifício Amaro Mesquita, no cruzamento da avenida Rio Branco com a rua João Pessoa. É a origem do nome do logradouro.
Conta-nos Cascudo, que Amaro Mesquita era um caixeirinho que ali mesmo varria calçadas e dizia de si para si: "Nesse lugar vai ser o meu sobrado" ou "eu farei aqui o meu sobrado". De balconista, Amaro tornou-se próspero comerciante e construiu o seu sobrado no lugar onde era o Café: é o Edifício Amaro Mesquita.
Manoel Procópio de Moura Jr. nos informa que, em 1845, o presidente da Província, Casimiro de Morais Sarmento, determinou a ampliação da atual rua João Pessoa, derrubando a mata existente até a rua Princesa Isabel.
E nos diz ainda Procópio: “após esta derrubada, a atual Princesa Isabel passou a chamar-se Rua dos Tocos, enquanto a parte ampliada da atual rua João Pessoa, passava a se chamar Rua Sarmento.”
Diz ele que, “anos depois, quando a Rua Sarmento já atingia a atual Av. Deodoro, recebeu, em 13 de fevereiro de 1888, a denominação Rua Visconde de Inhomerim (Francisco Sales Torres Homem).”
E arremata: “Este nome se conservou até o início do Século XX, quando passou a chamar-se Rua Coronel Pedro Soares, para, finalmente, já na década de 1930, chamar-se Rua João Pessoa.”
Odilon de Amorim Garcia nos revela que, ali, “durante a II Grande Guerra, começou a funcionar o “Serviço de Alto Falante”, de Luiz Romão, cujas caixas de som eram fixadas em um poste, exatamente na esquina da João Pessoa com a avenida Rio Branco, defronte ao “Café Grande Ponto”.
Nos diz, que “todos os dias, às 19 horas, o Serviço transmitia músicas, e, às 21 horas, retransmitia o noticiário da BBC de Londres.” E que “Os freqüentadores do Grande Ponto se deslocavam para aquela esquina para ouvir as últimas notícias sobre a guerra.”
Odilon nos conta uma estória do popular Zé Herôncio, no carnaval, “vestido de mulher, tendo na mão um pinico cheio de salsichas, ostensivamente, com caretas como de nojo, fazia que comia o verdadeiro conteúdo que geralmente existe num pinico.”
Marcos Maranhão, filho de Djalma Maranhão, poeta-prefeito que mereceu, a partir de projeto de lei do vereador Antônio Júnior da Silva, do PT, a homenagem de ter o seu nome ligado ao Grande Ponto, traça um perfil político, humano e de realizações do pai.
E vem um desfile de grandes estrelas com seus textos que, somados, dão um panorama do que foi e é o Grande Ponto para a cidade do Natal. Senão, vejamos o que eles dizem do Grande Ponto:
Para Ubirajara Macedo, “o Grande Ponto era uma festa.”
Odilon, dos vivos, talvez o mais velho, ensina que “nunca se deve mexer em coisa antiga”, e pondera, “mas, às vezes, é bom trazer de volta um passado que alegrou a nossa mocidade.”
Marcos Maranhão lembra que “as cidades antigas tinham seu lugar sagrado no centro, na Ágora em Esparta, na Acrópole em Atenas, no Capitólio em Roma.” Que, “Ali, os cidadãos se reuniam e faziam discussões sobre os assuntos mais importantes, divertidos e esportivos da cidade.”
“Um dos costumes mais interessantes de uma parte da população natalense das últimas décadas do século passado e primeiros anos do presente foi a instituição do Cantão, local onde se reuniam grupos de intelectuais, funcionários públicos graduados, políticos e comerciantes.” Cantões. “ Na Cidade Alta, eram bastante concorridos os seguintes Cantões: da Gameleira, o mais antigo e temido pela crítica sempre ferina, situado à Praça da Alegria, atual praça Padre João Maria”, conta-nos João Gothardo Dantas Emerenciano.
“Em sua residência, o Vigário Bartolomeu costumava receber os amigos, à tardinha, na calçada, à sombra da própria casa, segundo hábito daqueles tempos em Natal, cidade provinciana. Ali, eram dispostas cadeiras constituindo as tradicionais ‘rodas’ para as ‘prosas’, hoje denominadas ‘bate-papos’, as quais se prolongavam até certas horas da noite. Essas ‘prosas’ eram comuns nas calçadas das principais residências da cidade, ou à sombra de frondosas árvores existentes nas praças, destacando-se a do “Cantão da Matriz”, sob majestosa gameleira da Praça da Alegria,” rememora Antônio Fagundes.
Lauro Pinto lembra que, “antigamente, essas reuniões em Natal, como nos diz o historiador General Pessoa de Melo em seu livro ‘Natal de Ontem’, tinha o nome de - Cantões - cerca de cem anos atrás.”
Para Joanilo de Paula Rêgo, o Grande Ponto “é o território encantado onde vive a alma errante, boêmia e lírica, curiosa e loquaz, da gente natalense.” Joanilo é do Cantão dos Pastoradores da Estrela da Manhã, ainda na ativa, depois das 23:00 horas.
“O Grande Ponto era tão importante que tinha lugar de destaque no mapa do Brasil. É. (...) Grande Ponto dos “coronéis” da política, que enfeitavam as noites daquele verdadeiro campus universitário com seus ternos de linho branco irlandês 120”, nos garante José Maria Guilherme.
Em versos, Nei Leandro sapeca que

“o cafezinho ao lado
às vezes queimava a língua
de quem falava demais.”

Aos oito anos, Clara de Góes foi a escolhida para “Ver o padrinho, o prefeito, levar-lhe um par de meias. Levar os recados, as recomendações de todos, se lembrar, não esquecer, trazer de volta, aos seus, um gesto dele, habitual... Eram os idos de 64 e Djalma estava na Embaixada do Uruguai, no Rio. Ou partia ou, na rua, seria preso, já amargando a saudade e a tristeza que viriam, longe do Grande Ponto.
Em Itamaracá, e pelo resto do Brasil, depois vários outros países da América Latina, presos políticos amargavam o chicote do pau-de-arara, o cacete, os choques elétricos, as unhas arrancadas, o terror, o medo, o poder dos quartéis sob ordens da inteligência norte-americana, a intervir no mundo, ferindo a autodeterminação de povos, com medo do comunismo.
Luciano de Almeida faz fragmentos do Grande Ponto, e diz que “Com o Ato 5, soa o dobre de finados para toda a atividade política no Grande Ponto. Ponto final.” Helmut Cândido tem parecer semelhante: “O Grande Ponto morreu. Não vive mais. Perdeu-se no tempo.”
Graco Medeiros, “filho de velho decano dos comerciários do centro da cidade, chamado Luiz Cleodon de Medeiros”, jura que “(...) ‘fechou o tempo’ na Cidade Alta para ver a movimentação de soldados do exército, com roupas de campanha e um baita caminhão verde-oliva toldado, ocupar o passeio público para retirar a parafernália de guerra das vitrinas de “O Novo Continente”. Ele lembra que era, justamente, a noite de 24 de agosto de 1961, e que, no dia seguinte, “Dia do Soldado”, Jânio da Silva Quadros comunicaria sua renúncia a um país perplexo.”
Em cima do Novo Continente, o Natal Clube, Cantão de festas no passado e carteado no fim de festa.
Grande Ponto de tantas boas e más línguas, que revoltam o poeta ítalo-natalense Franco Jasielo, há décadas aqui arraigado, que torna-se catastrófico e ferino: “os bares e os poetas foram demolidos. A fofoca legítima fugiu para os jornais.”
J. Charlier Fernandes também faz poesia:

“Grande Ponto
Grande porto
orbe liberto do tempo:
sendo um pouco o teu retrato
(com a minha alma fechada)
eco de tuas vivências
(com o meu sossego calado)
por que assim avassalas
no teu chão de confidências?”

E poesia também faz Celso da Silveira:

“Centro referencial
de política e cultura,
de oposição e governo;
a palavra ali falada
no palanque dos comícios
ganharam tal ressonância
que nos seus cantos ecoam.”

“Ali, a democracia participativa criava raízes, pois a discussão era permanente sobre as grandes questões nacionais e da cidade”, quem nos diz, de pés no chão, é Moacyr de Góes, que nos lembra que essa prática só muito depois começou a ser usada no Brasil, pelo PT. Fala-nos do Fórum de Debates. Era o Cantão da Praça da Imprensa.
Era um ponto xaria, habitado por todos os canguleiros da velha Ribeira, que começava a perder encantos e comércio, prostíbulos, bares e almas que subiam a ladeira para a conversa diária e amena de fim de tarde, com mortais que surgiam do Tirol, Petrópolis, Alecrim, Quintas, de onde mais?
“Nesta ‘Universidade’ popular, reuniam-se intelectuais, esportistas, políticos, jornalistas, estudantes e um sem número de prisiacas. Era uma fonte inesgotável de comentários, boatos e muita conversa fiada que invadiam a nossa pequena Natal”, tese de Manoel Procópio Jr.
Casciano Vidal nos confessa que “assumindo o Grande Ponto e sua genial humanidade”, ele percebeu “coisas que os olhos curiosos do menino chegado de Mossoró e Alexandria nunca tinham visto.”
Falves Silva historia e analisa, e afirma que “era naquele local onde os expoentes daquela geração, a das cocadas, resolviam os problemas do mundo.” Era o Cantão das Cocadas.
Eugênio Neto ainda afirma que “a ‘Calçada do Café São Luiz’ é, hoje, para nós, seus freqüentadores, verdadeiro estado de espírito. Não se entende começar o dia sem uma chegada até lá. Outro cantão, gabado pelo padre José Luiz: “O Grande Ponto existe? Existe o Café São Luiz”!
O Grande Ponto, que, para Leonardo Sodré “já foi moderno, hoje tem história e melhor do que grande diante do crescimento da cidade, virou um ponto que foi grande fisicamente e se tornou maior ainda pela memória que guarda e preserva.”
Talvani Guedes da Fonseca afirma que “havia um pedaço do Grande Ponto que não dormia.” E Protásio Melo, como se a sentir a nossa sede, começou a ver que “não havia mais um lugar para sentar, conversar, beber ou comentar a vida alheia.” Para depois comemorar: “é quando aparecem os irmãos Rossini, Múcio e Aldemar Miranda, inaugurando a Confeitaria Cisne.” Aí surge o Cantão do Canto do Cisne.
Manoel Onofre Jr. registrou ser o Grande Ponto “sala de visitas, centro de convivência, ágora, universidade popular. Tudo isto e algo mais.” Cantão.
Para não fugir ao risco do vou, não vou citar, Inácio Magalhães Sena escorrega: “eu não devia mencionar nomes, por acabar esquecendo algum. Mas como esquecer”...
“O Grande Ponto não somente situa uma espécie de centro geográfico da capital, como assume o centro afetivo de encontro e relacionamento de um permanente potencial de sua população”, defende sociologicamente Raimundo Nunes.
Na visão geográfica de Franklin Serrão, “a história da construção deste nosso espaço geográfico afetivo se confunde com tradição e todos os elementos sociais que produzem modificações através do tempo.” Modificações essas que não querem calar na indagação de Cristina Tinôco: “a quem importam as feridas expostas do velho centro? Quem as cuidará?”
Filho do grande grandepontense Alexis Gurgel, Alexandro chega trazendo-nos poesia em prosa: “o badalar do sino da Igreja do Galo continua preciso e atento às mudanças da Cidade Alta.”
“Lembra-me o Montmartre de Paris, de minha juventude de estudante”, diz padre Agustin, enquanto Raquel Alves de Sousa, saudosa, faz poesia de pranto: “hoje, o Grande Ponto cresceu e o Cinema Rex é só memória.”
Grande Ponto do Cantão da Vesúvio, onde, “No meio da rua, um pierrot de branco parou em frente à porta. Tira do bolso um lança-perfume e ensopa um lenço que leva ao nariz. Logo seus braços pendem e o lenço se desprende. O pierrot hesita, vacila e começa a cair devagar. Flutua, como que paira, leve, descendo aos poucos até o chão.” Era Newton Navarro, em prosa/poesia de Cláudio Pinto Galvão.
Grande Ponto numa Natal que, para Petit da Virgens, era “uma grande Nova Iorque”, cidade que possuía um Grande Ponto que sediava uma Confeitaria Cisne, onde, “Numa dessas belas tardes festivas, reunidos ali em uma cervejada, Cascudo, Saturnino, Severino Nunes e eu, depois de simbolicamente ouvirmos “o canto do galo”, que ainda ressoava nas páginas da história, discutimos informalmente a possibilidade de mandarmos cunhar uma medalha de ouro com o número 13 encimado por um galo e que essa medalha servisse de insígnia aos iniciados” do Clube dos Inocentes, como lembra o professor Melquíades.
Todo esse saber, essa filosofia e esse testemunho são parte da cultura da cidade do Natal, que tem, no Grande Ponto, o seu coração safenado. Grande Ponto que foi o maior entre todos os cantões da cidade do Natal: a ágora, a Universidade do Grande Ponto, cujo reitor era, sem dúvidas, João Cláudio Machado.
É, ainda através desse Grande Ponto que a cidade respira, aspira, agiganta-se e não se retrai, porque o Grande Ponto é chão de luta e também história de amor a terra.

Tirol, 27 de novembro de 2002.

Eduardo Alexandre de Amorim Garcia





Natal - Uma pitada de História
José Alexandre Odilon Garcia

Por que cidade do Natal?
Porque assim a chamou o capitão-mor Jerônimo de Albuquerque, que, enviado de Felipe II, rei de Espanha e Portugal, para colonizar o território e coibir o abuso dos piratas que aqui traficavam pau-brasil com a ajuda dos índios Potiguares - naquela clara manhã do dia maior da cristandade, em 1599. Pura e singela homenagem ao 25 de dezembro.

O local exato do primeiro marco
Um terreno elevado e firme, de impressionante beleza selvagem, a meia légua do Forte dos Reis Magos, foi o local escolhido pelo fundador (pernambucano, mameluco, filho de valente oficial português e mãe indígena) para lá fincar o pelourinho, símbolo do poder real e marco inicial duma cidade que nascia sob o signo da Estrela de Belém. É a atual praça André de Albuquerque, na Cidade Alta.

Melhor pau-brasil da costa
Trecho duma carta, datada de 1564, do próprio punho de Jerônimo de Albuquerque, filho do primeiro donatário, a El-Rey; "Necessário se fazer povoar a capitania, antes que os franceses o façam, franceses que daqui levam, todos os anos, naus e mais naus carregadas de pau-brasil, por sinal o melhor de toda a costa".
Trinta e cinco anos depois, El-Rey acreditou ser hora de agir. Os piratas, agora não somente franceses, mas de todas as nacionalidades, agiam impunes por todo o litoral e alguns tomavam atitudes de verdadeiros senhores da terra. Para pôr fim à traficância, foi autorizada a construção de um forte.

O Forte dos Reis Magos
O formato é semelhante a tantos outros fortes marítimos, disseminados ao longo da costa brasileira. É uma sólida construção em forma de polígono estrelado, medindo 64 metros de comprimento e erigido em cima de arrecifes, ficando ilhado em maré alta, a 750 metros da barra.
Iniciado em 6 de janeiro de 1598, daí a sua denominação. Em 1608, Dom Diogo de Menezes, Governador Geral, informava que a "povoação está feita, mas não tem gente". Mesmo assim, três anos depois, considerava-a, oficialmente, como município. Mas, em 1614, apenas 14 casas contavam-se na cidade, menos de uma por ano, desde a fundação. Em 1671, as estatísticas não espelhavam melhoria: existiam 60 casas. Somente.

Os ferozes Potiguares, inimigos dos portugueses
As relações inamistosas entre colonos e as nações indígenas aqui sediadas, como Potiguares e mais Cariris e Janduis, principalmente os Potiguares, eram o grande entrave e fonte permanente de desassossego. Curioso - os Potiguares sempre foram visceralmente hostis aos portugueses. Antes da colonização, eram excelentes amigos dos franceses. Depois, constituir-se-iam em força auxiliar de decisiva importância para a vitória das armas holandesas. Talvez o motivo fosse de simples tratamento. Enquanto os adventícios os tratavam de igual para igual, os lusitanos nunca se esqueciam que eram não só os novos senhores da terra, como de quantos a povoavam. E, não raro, procuravam, à força, reduzi-los à escravidão.

A figura de Felipe Camarão
Somente na guerra pela restauração pernambucana, os Potiguares olvidaram velhas rixas e uniram-se aos portugueses e negros, na primeira amálgama da raça, para a expulsão do holandês invasor. Aí, surge a figura do nosso primeiro herói, o cacique Felipe Camarão, amigo de Henrique Dias e André Vidal de Negreiros, aliado de João Fernandes Vieira. As envenenadas flechas de seus temíveis guerreiros muito contribuíram para a total expulsão dos flamengos.

Tremula outra bandeira no Forte dos Reis Magos
Vinte anos duraria o domínio batavo no Rio Grande do Norte, desde aquele dezembro de 1633, quando 14 naus, sob comando do almirante Lichthardt, abriram fogo sobre o forte, enquanto Baltazar Bijama, por terra, com dez companhias fortemente municiadas (desembarcadas em Ponta Negra) completavam o cerco. A resistência foi quase quixotesca dada a desproporção das forças. Oitocentos contra oitenta. Mesmo assim, o capitão Pero Mendez de Govea ganhou a admiração dos vencedores, merecendo honras militares.
Arriada a bandeira lusa, outro pavilhão foi içado e tremulou no forte, que passou a chamar-se Castelo Ceulen, a bandeira da Companhia das Índias Ocidentais.

Quando Natal foi Nova Amsterdã
A imaginação popular atribui grandes modificações, e notáveis feitos, realizados sob inspiração dos holandeses nas duas décadas em que Natal foi crismada de Nova Amsterdã.
Nada mais falso. O próprio Maurício de Nassau, após inspeção em 1638, queixava-se à alta administração de sua Companhia, que a "terra era muito decaída, devastada pela guerra, e precisando de tudo".

Progresso a conta-gotas
O panorama não mudou grande coisa com a reintegração à soberania lusitana. Durante séculos e séculos, a cidade dormiu pachorrenta, esquecida de todas as administrações centrais, em verdadeiro progresso a conta-gotas, fossem elas exercidas por reis, vice-reis, regentes, imperadores e presidentes da República. Inicialmente, fez parte da Província da Bahia. Durante todo o Brasil-Colônia, gravitou à órbita de Pernambuco. Atingiu foros de província em 1817.

Salto para a frente
Somente em 1942, quando Getúlio Vargas e Franklin Delano Roosevelt acertaram os ponteiros no histórico encontro de Parnamirim, para a soma de esforços pela vitória sobre o Eixo, Natal despertou de seu longo sono de cidade pobre, sem indústria e comércio e de apenas 40 mil habitantes (até início da quarta década do século XX).
Foi preciso uma guerra para transformar um pequeno burgo em Trampolim da Vitória. E para que a cidade lendária, surgida às margens do Potengi, desse o seu salto para a frente.
Em 1942, a II Conflagração Mundial, iniciada na Europa, transferira o seu campo de ação para o Continente Negro, mais precisamente para a África Ocidental. E Natal, dado a ser o ponto mais próximo da África, distante apenas horas de vôo de Dakar, teve a sua posição estratégica ressaltada.
Forçoso era aparelhá-la para prevenir o futuro e para transformá-la realmente em Trampolim da Vitória.
Pela Base de Parnamirim, construída em tempo recorde, transitavam, às centenas por dia, aviões a transportar tropas, armamentos e víveres para os soldados de Montgomery em sua luta de vida e morte com o orgulhoso marechal Von Rommel.
Aqui, concentraram-se grandes contigentes militares, brasileiros e americanos.

Praça de guerra
Natal foi considerada, então, praça de guerra. E viveu uma trepidante fase, com suas ruas repletas de soldados de todas as nacionalidades, um dos pontos escolhidos por americanos, canadenses e ingleses para as suas horas de licença. Em meses, a população duplicava e a cidade expandia-se em ritmo febril.
Este impulso vitalizador embalou a cidade para o futuro. Mesmo quando o ambiente militar foi substituído pela rotina dos tempos de paz, a cidade não parou de crescer. Data deste tempo a ampliação da Base de Parnamirim e a construção da Base Naval, Dique-Seco e quartéis de unidades do Exército.



Natal dos Idos 40
José Alexandre Odilon Garcia

Quando o velho companheiro jornalista José Alexandre Garcia fez sua estréia no extinto "Jornal de Natal" (anterior ao atual), o diretor do JN, jornalista Djalma Maranhão, chamou "Alex" e fez uma confidência: "não estou gostando de sua coluna. "Por quê?” Indagou o colunista, surpreso: "É que você não ataca ninguém. Meta o pau nessa canalha!". (Everaldo Lopes)

Para falar em Grande Ponto, necessário se torna nos situarmos no tempo e no espaço - como ensina mestre Cascudo.
Como era Natal nos anos 40? Natal era cidade modorrenta e provinciana, 40 mil habitantes espremidos entre Ribeira e Cidade Alta, até a avenida Deodoro, se muito. O resto era a pobreza franciscana das Rocas, os sítios do Tirol, a mata de Petrópolis, o Alecrim ensaiando os primeiros passos.
Sem muitas perspectivas. Mesmo os filhos da terra, faziam feroz autocrítica.
- Cidade do já teve, classificavam, ironizando a apatia reinante, onde a maioria se masturbava sadicamente quando iniciativa das mais audazes entrava em colapso.
- Uma fazenda iluminada, nada mais, definia João Machado.
Mas, assim como as pessoas, as cidades têm o seu instante de afirmação, o seu dia de superação, o empurrão providencial, o chamado passo a frente decisivo e consagrador.
Para Natal, este momento foi a II Grande Guerra, ou, para sermos mais minudentes, justamente na fase em que, triunfantes e arrogantes - ocupadas e vencidas a Polônia, a França, os Países Baixos e Nórdicos, humilhada a Inglaterra no desastre de Dunquerque - os germânicos voltaram cobiçosos olhos para as reservas petrolíferas do Continente Negro.
- Estamos vivendo os primeiros anos do I Milênio do III Reich - perorava Hitler em seus histéricos discursos.
E, de fato, a Germânia parecia a senhora do mundo, com suas moderníssimas armas, as blitzs, o rolo compressor das pan-diviziones, as minas espalhando terror pelos mares do mundo.
Os aliados, então, concluíram que se os nazistas realmente se apoderassem do petróleo africano, tudo estaria perdido.
E resolveram enfrentar o invicto Von Rommel de peito aberto, frente a frente, na base do agora ou nunca.
E onde entra Natal neste imbróglio, perguntarão vocês.

Natal, que dormitava sonolenta
Natal, dos tempos idos de 40
Recordo os belos bailes do Aéro
Num banco da Pracinha, ainda lhe espero
No Rex, sessão das moças, Quarta-feira
Natal, Cidade Alta e Ribeira
O bom você não sabe e eu lhe conto
O footing, à tardinha, no Grande Ponto!

É que Natal, como cidadela mais próxima da costa africana, era ponto estratégico por excelência, de importância vital, reconhecida e proclamada posteriormente como Trampolim da Vitória.
E pela Base de Parnamirim passaram a transitar, às centenas, diuturnamente, fortalezas voadoras transportando tropas, armas e víveres para fronts até então desconhecidos internacionalmente, mas que seriam celebrizados mais tarde como Tobruck e El Alamein, como os primeiros grandes passos da grande arrancada que seria, daí por diante, a caminhada até a parada final em Berlim. Enfim, a suspirada "virada" que transformaria os até então vencidos em vitoriosos.
Para garantir esta operação-África, foi preciso o suporte e o apoio logístico de milhares de brasileiros e estrangeiros, principalmente americanos que estabeleceram uma praça de guerra chamada Natal.
Uma base naval foi construída em tempo recorde, ampliadas e triplicadas as instalações da base aérea, construídos quartéis à toque de caixa, para alojar não apenas os infantes, mas grupos de artilharia antiaérea, de carros de combate, transferidos do sul do país. Foi a época das noites de blecaute, do receio de ataques inimigos, dos ricos a construir abrigos sofisticados em suas residências e a Prefeitura a cavar abrigos populares em praças e terrenos baldios.
Eu disse, acima, praça de guerra? Pois era.

Um dia, tudo se modificou
O burgo se internacionalizou
Nas ruas, o alegre do my friend
Moçada, pela mímica, se entende
Natal entrou fardada na História
Para ser o Trampolim da Grande Vitória
Valeu o sacrifício do seu povo
Na guerra, meu Natal nasceu de novo!

E além do soldado e do marinheiro verde-amarelo, tornaram-se figuras corriqueiras a povoar avenidas, ruas e becos da cidade, gorros de marinheiro e fardas cáqui dos my friends.
Digo mais: quando a batalha africana atingia o seu clímax, Natal passou a ser a cidade-descanso, a cidade dos dias de licença dos combatentes.
E o que almejava um jovem de 21, 22 anos, com os bolsos cheios de dólares, doidos para esquecer a loucura dos campos de batalha e as longas vigias a bordo de belonaves? Divertir-se, gozar o hoje em toda plenitude, pois o amanhã era uma incógnita.
Na Cidade, então, floresceu um estranho comércio de bares, restaurantes, casas noturnas, joalheiros, grandes magazines, mercadores de mil e uma especiarias, 99% dirigidos por aventureiros de todas as nacionalidades e pátrias. Os quais, como tão céleres e misteriosamente aqui se instaram, também, num abrir e piscar d`olhos, cerraram portas e fizeram malas. Quando terminada a Batalha da África, com a vitória aliada, as operações militares retornaram ao continente europeu, começando pela bota italiana da Sicília.
Mas, voltando aos idos 40, era natural, pois, que num clima de febricidade como aquele, houvesse freguesia para todos os gostos, mesmo os paladares mais requintados, a exigir bombons de luxo, doces em conserva, bebidas finas, artigos enlatados e conservas em geral.
Como disse o compositor em música, "na Guerra, meu Natal nasceu de novo". Foi. Porque, desde então, o progresso instalou-se definitivamente como artigo de fé no burgo, arquivada, bem arquivada, aquela maldição e pecha infamante de terra do já teve.
Como quem queria recuperar o tempo perdido, Natal nunca mais parou de crescer, de expandir-se e ampliar-se em novos horizontes, de abrir novas artérias e, das artérias, multiplicar-se em novos bairros, povoando-os de belas residências.
O comércio, então, tornou-se tentacular, cada dia maior, ganhando a Cidade Alta, atingindo com força total o Alecrim.
Um pequenino detalhe que virou rotina e que até então ninguém dava a mínima importância: quem chegava ao burgo gostava de seu jeitão, do clima, da brisa que sempre sopra, vinda do Atlântico mesmo nas tardes mais quentes. Da beleza paradisíaca de suas praias. Da maneira de ser do seu povo simples, a transformar, em cinco minutos, em amigo do peito, cidadão a quem nunca vira mais gordo, e a levá-lo para sua casa e a franquear-lhe as delícias de sua mesa típica.
A carne seca com feijão verde, macaxeira, farofa de bola, manteiga de garrafa, peixada, a caranguejada, o sarapatel, camarões, lagosta, a boa caninha com caju de conta.
Sim! E suas mulheres, lindas e esculturais? De virar cabeça!
Acrescente-se este ar de permanente feriado que a cidade tem, a pedir pernas para o ar, lazer, languidez, alegria, boemia, violão, seresta, amor...







Rua Sarmento, esquina da Rua Nova, 27 de novembro de 1845
Newton Machado Wanderley

Ficção

Na botica da Rua do Commercio, José Gervásio manipulava medicamentos, quando sua mulher anunciou:
- Gervásio, Sarmento está aí, querendo falar com você.
Gervásio livrou-se rapidamente de seu avental, tomou a bengala e a cartola e acorreu ao social de seu estabelecimento.
Sarmento, sempre cercado de puxa-sacos pouco competentes, era o presidente da Província e homem estimado. Poderia até dizer que o Cantão da Botica fervilhava àquela hora, como sempre fervilhava a partir das quatro da tarde, quando muitos se misturavam na conversa de todos os dias.
Muito ainda se falava na posse de Pedro II, o imperador menino, estória que os moleques não cansavam de escutar. Os assuntos eram poucos e as novidades chegavam das ribeirinhas, do cais do padre ou do cais da Ribeira, barcaças a entrar barra a dentro com o produto importado de todo o comércio.
- Gervásio, estou pensando em desmatar pra lá da rua Nova. Os rapazes e moças estão crescidos e é por lá que eles estão querendo construir suas casas. Alguns já estão casando...
Sarmento gostava das opiniões de Gervásio e, por isso, veio ao amigo para formar decisão. Gervásio fez a observação de que a Ribeira estava começando a ficar movimentada em torno do cais e concordou no desmatamento “para transformar o Alto em verdadeira cidade alta”.
- Eu presenciei essa estória e por isso eu a conto. Dizia o negro Zacarias, agarrado ao cabo do facão, a abater uma pobre maçarandubeira.
O negro Zacarias dizia ser adivinhador de futuro, mas ninguém ligava para ele.
Vez por outra, quando o coronel Odilon, irmão de Gervásio, chegava do Lloyd para a conversa de todo dia, o negro Zacarias dizia:
- Esse coronel ainda vai fazer um bem danado para à minha raça. Eu mesmo serei um que ele libertará.
E ninguém dava asas às conversas do negro Zacarias.
E Zacarias estava ali, por ordem de Gervásio, ajudando outros homens, a maioria negros, escravos de moradores da redondeza, no pesado do desmatamento.
- Isso aqui, muito depois da morte do imperador, vai ser o impulsionador de Natal para se tornar grande cidade.
E dizia que o imperador não terminaria seus dias no Brasil e que, antes de sua volta para Portugal, os escravos seriam libertados.
Eu conto essa estória porque o negro Zacarias morreu, tive notícia ainda agorinha, vítima de uma picada de cobra coral, enquanto limpava um lugar debaixo do cajueiro grande, para descansar. Gervásio não conseguiu salvar o negro!
Zacarias dizia que o coronel Odilon seria um grande defensor da libertação dos escravos e que, depois da ida do imperador para Portugal, o Brasil teria um governo diferente, com um imperador escolhido pelo povo.
Mas Zacarias era um negro doido e ninguém dá bola para um negro doido!
E Zacarias dizia que a rua não duraria muito com o nome de Sarmento, o homem que mandou abrir o mato. Quem vai querer vir morar aqui? Eu mesmo, quando casar, vou montar minha casa na Ribeira.
E, não sei porque, ele passou bem uma hora resmungando: Inhomerim! Inhomerim! Eu sei lá o que significa isso! E depois dizia: Pedro Soares! Pedro Soares! E virava para mim e dizia que iam mudar Pedro Soares para “as bandas do morro”.
Eu, que não sei quem é Pedro Soares, não o imagino fazendo o quê, pelas bandas lá do morro. Ele quer ser devorado por algum Potiguar ainda renitente, diabos?
O negro contava a estória de um presidente que seria assassinado, gerando muita comoção. Um presidente da Paraíba, mas que teria repercussão ali, na rua Sarmento que ele ajudava a abrir.
E dizia que nada seria mais importante que o lugar onde derrubava o cajueiro grande. Dizia que ali seria um ponto, um grande ponto, onde um português montaria um café, na frente do qual um instrumento estranho emitiria notícias de uma guerra espalhada pelo mundo, razão pela qual metade da população da cidade falava um idioma que ele dizia não entender.
Ele dizia que via carroças imensas rodando por ali, e sem ninguém no chicote, porque nessas carroças não existiam jegues ou bois.
Dizia que dali partiria para uma grande luta um administrador da cidade, que iria cuidar de fazer com que os meninos aprendessem a ler, mas que seria muito injustiçado, morrendo muito longe do seu chão. Que esse administrador seria finalmente reconhecido e que voltaria a vagar por aqui, pela eternidade, de pés no chão.
Zacarias dizia que por ali passariam grandes homens e que ali seria o centro de todos os grandes acontecimentos da cidade.
Mas Zacarias é só um negro doido e eu ainda tenho que ir ao baldo, tomar um banho e carregar no lombo do jumento uns potes para que minha mãe Joana tenha água para levar a casa.
Que negro mais doido, esse Zacarias! Foi morrer logo agora, que o presidente Sarmento vem para a inauguração da rua que destocamos, depois de cinco semanas de trabalho. Como, agora, o coronel Odilon vai libertá-lo, se está morto?



Cidade do Natal
Luís da Câmara Cascudo

Durante cinqüenta anos, Natal progrediu tão pouco que melhor seria dizer que não progrediu. De 1810 a 1860, raros melhoramentos. Em 1810, Koster descreve-a com 700 habitantes; a rua Grande1, larga praça vestida de camapu e mata-pasto, com orgulho administrativo da Câmara e cadeia acaçapada, o palácio rococó dos capitães-mores e as três igrejas: Matriz, Santo Antônio e Rosário.
Quatro ruas de poucas casas desembocavam na rua Grande. Anos depois é que se fechou o lado leste e a rua da Conceição abrigou o Governo e outros centros de poderio e papelório. Da Rosário, ao que depois de 1850 começou a ser rua do Comércio, se estendia o denso dos oitizeiros, sapotis e pitombas, o verde-claro imóvel das carrapateiras ramalhudas e das mangiriobas franzinas. Ao sul, margeando risco do “caminho de beber”, embastia-se a mataria de gameleiras, paus-d`arcos, aroeiras e pau-ferro.
Do Bardo ou Baldo ao monte, toda a elipsóide sul a leste, a vegetação irrompia vigorosa e alta, farfalhante e ampla. Casinhas rompiam a rua Nova², em largos espaços de faxinas, onde surgia, medroso, o ensaio das flores de casa, cravos brancos em panelas trepadas, maravilhas rasteiras, o rubro veludo dos amarantos, jasmins de cheiro suave, as perpétuas brancas, as saudades delicadas, os primeiros estefanotes, as bocas-de-leão, as cravinas simples, os rosedás insolentes de perfume. Perto dos galinheiros de reserva, as altas espirradeiras, as palmas dos tinhorões, sombreando as pequenas touceiras de nuvens do céu. Nas praçuelas, gameleiras, oitis, castanholas e mungubeiras estendiam sombras... No Bardo, lagadiço cercado de barro batido, fazia-se ponto de banho festivo e de peraltice ingênua. Depois de 1859 ou 60, a praça das laranjeiras reunia os pisa-flores chilreantes, de casacão de belbutina, colete rombudo, calças justinhas com fileiras de botões e o pescoço enrolado na gravata manta, com três voltas à Feijó, comendo o queixo e escondendo a testa nas abas do chapéu revirado, chititi como se dizia naquele tempo.
Depois da “ladeira” (muito tempo após, rua da Cruz) a Campina guardada, perene e seguro o grande pântano alimentado pelas marés. Havia uma pontezinha. Era um quadrado imenso, desolado, silencioso.
Corria, de sul a leste, o canavial cerrado; após, com bruscos trechos de areia lodosa, o coqueiral, espanando palmas até as encostas de Areal e Rocas. Cercadas, pelas dunas e pelos coqueiros, cinqüenta ou cem casas tímidas e espaçadas anunciavam a cidade. Gameleiras, tatajubeiras, mungubeiras davam o lugar das prosas. Era a Ribeira, pequena, triste, atufada em brejos, circundada de lagoas, de atoleiros, de pântanos. Era o alvo das rajadas do cholera e de bexigas. Lugar enfim onde moravam a pobreza, a indigência e a miséria – gritava, em 1850, Carlos Wanderley, no relatório da Assembléia.
O Potengi invadia, lambendo as pedras das calçadas, as rua enfileiradas. Vez por outra, terrenos alagados cediam e as construções vinham abaixo. Em 1869, é que o Dr. Pedro de Barros Cavalcanti de Albuquerque mandou fazer um anteparo. Dez anos depois, o Dr. Rodrigo Lobato Marcondes Machado informava sobre o serviço do cais – importante melhoramento empreendido no intuito de repelir as marés que ameaçam avassalar os terrenos e as casas...
Com Manuel Ribeiro da Silva Lisboa a cidade do Natal não tinha aspecto pomposo. As ruas em miserável estado, sem calçamento e entulhadas de areia; sem água, sem iluminação, sem cadeia e sem nada, declarava Parrudo. Novas ruas iam aparecendo no Bairro Alto – Cidade – como era chamado. O primeiro médico, Dr. José Bento Pereira da Costa, é de 1842.
Em 1859, o presidente João José de Oliveira Junqueira inaugura a iluminação a querosene, alguns lampiões, sugeridos, nove anos antes, por João Carlos Wanderley. Luz a gás tivemos com o presidente Antônio dos Passos Miranda, em 1870. Pouco tempo antes, 1870, Natal possuía ruas calçadas, alguns chafarizes e o velho desejo – o piso de pedras na ladeira. A Ribeira estava sendo o bairro comercial, dinheiroso, materializado. A rua do Comércio³ já estadeava prédios e armazéns repletos de açúcar, algodão, sal, peles, embarcados pelas sumacas e barcaças bojudas para Pernambuco, o grande comprador.
A cidade se alastrava, lenta, dos dois núcleos. De um lado, paralelo ao rio, corriam as casinha e cochicholos de palha. Da rua Grande, destronada pela rua da Conceição, partiam lances de moradas vaidosas em sua brancura e no chiste das janelarias altas e telhados em cauda de andorinha. São ponto de gente graúda: rua Grande, rua da Conceição, rua da Cruz, rua do Fogo, rua das Laranjeiras, Rua Nova... Nos domingos existem os lugares de passeios e de caça. Caminho Novo, Barro Vermelho, Passagem, Quintas, Refoles. E, desde 1850, a praia da Redinha, pouso dos presidentes, local das peixadas e serenatas dominicais. Apesar disto, J.C. Fernandes Pinheiro escreve em dezembro de 1871 – Em verdade a cidade do Natal, mesmo vista de fora, parece justificar o trocadilho que lhe ouvi aplicar – cidade-não-há-tal. Para o Dr. Henrique Pereira de Lucena, Natal era uma vila insignificante e atrasadíssima do interior (1872). Com as eras de oitenta, a política subjuga a Província. Os presidentes tratam de eleições, intrigalhas, discurseiras.
Os partidos tomam a sério os programas e os lugar-tenentes se digladiam em artigalhões e passeatas. Assim, até a proclamação sonolenta da República. O fato interessante de 1889 é ter o Conde D´Eu mandado o navio esperar por Silva Jardim, galo de campina da propaganda, que tinha ido arengar em São José de Mipibu.
A cidade do Natal, fundada no século XVI, nasceu no século XX. Os intermediários são períodos de história guerreira, política ou dorminhoca. Faz de conta que não existiu.

A sociedade

A sociedade era patriarcal. O elemento estrangeiro era nulo ou nenhum. No interior das moradas, a sala de visitas era lugar de uso raro. Pouca mobília. Jacarandá para os ricos. Pau preto, amarelo, madeira nova para os medianos. Tosco e louvado engenho dos artesãos primitivos servia de aparelhador incipiente. A sala de jantar é que era o domínio da dona de casa. Aí reinava a palavra, provando o ponto nos doces, trocando bilros e espiando a tarefa das mucamas favoritas. Pouca convivência social. Amizade de vizinhos faziam-se as palestrinhas corridas através das varas de cerca divisória. Limitava-se à cambiagem de receitas e de meizinhas caseiras. Acocorada nas esteiras amarelas sobre o tijolo vermelho, a dona nucleava a vida íntima, recatada e simples dos antigos. De muito em muito é que ousava espreitar pelo rotulado um vulto estranho à terra. Lugar de reunião era a Igreja. A semana santa era tempo de festa de olhos. Aí se espanejava a casaca de baetão, as calças de duraque, o chapelão alto.
A senhora se orgulhava do roçante, vestido de seda, a mantilha negra ocultando o duplo bandó, ou o cocó, onde o trepa-moleque se fincava, o pescoço rodeado de colares e fios de luxo, santinhos, espíritos-santos, figas de guiné e medalhinhas e, nos dedos, grossas memórias de ouro de moeda do Reino. O ciúme à portuguesa circundava-a de pavor. O marido fechava-a, murava-a, distanciando-lhe a existência livre e respirável. E de sua parte vivia na rua, palrador, discurseiro, politicóide, discutindo nomes sob as gameleiras, incorporando aos séquitos oficiais, grudados aos salões do ser. Presidente, longe de casa sem noção de vida, de lar e de carinho continuado.
As distrações eram de fundo religioso. Os Santos Reis, antefestejados com serenatas e cantigas típicas à porta dos amigos – tirando os Reis. Carnaval de entrudo com empapanguzados gritadores e encamisados sensaborões. Santo Antônio, São João, São Pedro com fogueiras, comidas de milho, fogos do ar, bailarico e banho de madrugada, sob os dendezeiros e ingazeiros do Baldo. Chegada de presidente anunciada pelos canhões da fortaleza, procissão de penitência, assombradora e tétrica e, em novembro, festa da padroeira, com as novenas, fogos de vista, bailes do noiteiro na entrega do ramo e jogos florais, duelo lírico e satírico, na alegria dos palanques erguidos em outeiros – eis o ciclo das diversões sociais. Os presidentes, exilados por dois ou três anos em Natal, procuravam as praias, os sítios com água corrente, faziam calçadas, teciam pilhérias, enchendo o tempo de espera para melhor província ou deputado geral.
A cidade sem iluminação, sem calçamento, sem segurança afastava a vida noturna.
Quem saía em visita, previamente anunciada, fazia-se preceder de escravos com tochas resinosas ou lampiões. Toda gente andava armada. Pela noite velha, os ladrões eram caçados a tiros afugentadores. Da Cidade à Ribeira, o silêncio apavorante criou lendas, assombrações e malefícios na Ladeira. Os paredões de barro vermelho, escondidos sob as celsas, salsas bravas, ortigas e mata-pasto, intimidavam. E à distância, o viver próprio dos dois bairros, a nenhuma convivência entre famílias, criou inimizades e apelidos: xarias e canguleiros.
Ao ruflo da caixa das nove horas, o silêncio caía, tangível, sobre a cidade quieta. O casario fechado e mudo não escoava réstia de luz. Ao longe, o clarão oscilante e rubro da candeeiro público. Vagos rumores de passos. E, ao estribilho das corujas, noitibós e caborés respondia o canto coral da saparia boiando n`água negra das poças. Compreende-se o prestígio dos alegres, dos vivos porta-vozes da risada, da gargalhada lusitana, da gaitada brasileira, o riso largo, sacudido, dobrado, interminável. A estes uniam-se as tradições de valentões, porque andavam à noite, de inteligência pelos versos rabiscados e de insubstituíveis, se tocavam um instrumento musical.
Joaquim Eduvirges de Mello Açucena foi, durante sessenta anos, um deste homens, um insubstituível.

Canto do Potiguara
Lourival Açucena

(TORÉ)

Curupira se afugenta,
Manitó esquece a taba,
Mas minh´alma não esquece
O amor de Porangaba.

Cai a murta, o camboim
O murici, a mangaba,
Mas não cai dos meus sentidos
O amor de Porangaba.

Cambaleia o pau-d´arqueiro,
Que ao rijo tufão desaba:
Mas não se abate em meu peito
O amor de Porangaba.

Vai-se o torcaz que gemia
Ao pé da jabuticaba,
Mas não deixam os meus anelos
O amor de Porangaba.

Foge a abelha que zumbia
Sobre a flor da guabiraba,
Mas não foge aos meus afetos
O amor de Porangaba.

Despe a flor o ingazeiro,
A oiticica, a quixaba:
Mas não me escapa da mente
O amor de Porangaba.

Da cunhã remorde a face
Reimoso capiucaba;
Mas não remorde o ciúme
O amor de Porangaba.

De Moema o terno amor,
Não, não rende o imbuaba,
Mas a mim rende e cativa
O amor de Porangaba.

Da extremosa Margarida
O amor já não se gaba;
Mas eu decanto, Arãhi,
O amor de Porangaba.

O pajé canta a bravura
Do alto Morubixaba,
Mas eu só canto em toré
O amor de Porangaba.

Anhangá cede a Tupã
No poder que não se acaba,
Mas não cede a outro amor
O amor de Porangaba.

Explicação do Canto do Potiguara

Potiguara: “Comedor de camarão”, nome da tribo que habitava o Rio Grande do Norte.
Toré: Melopéia indígena. Canto tristonho, prolongando os últimos versos.
Curupira: Gênio do Mal.
Manitó: Gênio protetor da
Taba: Casa grande ou o ajuntamento das habitações indígenas.
Camboim: fruto silvestre do Brasil.
Muricy ou murici: Gênero de plantas malpighiáceas do Brasil.
Pau-d`arqueiro: Nome popular de pau-d`arco.
Torquaz, ou ainda concliz ou corrupião: Nome de ave do Brasil, famosa pelo canto e pelas cores.
Jabuticaba: Fruto da jabuticabeira, mirtácea do Brasil, que compreende várias espécies.
Guabiraba: Fruto da guabirabeira, gênero de borragináceas do Brasil.
Quixaba: Fruto silvestre do Brasil.
Cunhã: Donzela.
Capiucaba: Marimbondo.
Moema: Personagem histórica dos primeiros tempos da colonização no Brasil.
Imbuaba: Nome dado pelos indígenas ao europeu; do guarani – neboab, “pernas vestidas”.
Arãhy: Interjeição ou explosão de voz (em Tupi) traduzindo a saudade.
Pajé: Feiticeiro e cantor dos feitos guerreiros da tribo.
Morubixaba: Chefe dos índios. Maioral.
Anhangá: O Diabo dos índios.
Tupã: Deus

In Joaquim Eduvirges de Mello Açucena (Lourival Açucena) (Lorênio)
Versos reunidos por – Luís da Câmara Cascudo,
Coleção Resgate – Editora Universitária UFRN, 1986.

1. Defronte à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, onde hoje se situa a praça André de Albuquerque.
². Atual avenida Rio Branco, Cidade Alta.
³. Atual rua Chile, na Ribeira.
Notas do antologista.

Os Cantões
João Gothardo Dantas Emerenciano

Um dos costumes mais interessantes de uma parte da população natalense das últimas décadas do século passado e primeiros anos do presente foi a instituição do Cantão, local onde se reuniam grupos de intelectuais, funcionários públicos graduados, políticos e comerciantes.
Diariamente, um grupo de amigos, sem número definido, se encontravam na calçada da residência de um deles – sempre o mesmo – e colocadas as cadeiras estava reunido o conclave.
Havia vários Cantões na cidade, cada um com seu feitio próprio, localizados nos dois bairro existentes: Ribeira e Cidade Alta.
Na Cidade Alta, eram bastante concorridos os seguintes Cantões: da Gameleira, o mais antigo e temido pela crítica sempre ferina, situado à Praça da Alegria, atual praça Padre João Maria. O núcleo do Cantão, a casa de Joaquim Guilherme de Souza Caldas, inspetor do Tesouro, abrigava o “Grupo da Gameleira”, facção do Partido Conservador, liderado pelo padre João Manoel de Carvalho, três vezes deputado provincial e duas vezes deputado geral (1873-76 e 1886-89). Faziam parte, ainda, do “Grupo da Gameleira”, alusão à maior e mais frondosa árvore da praça, José Bonifácio da Câmara, Francisco C. Seabra de Melo e Manoel Porfírio de Oliveira Santos, figuras exponenciais da política potiguar.
Na antiga Rua Nova, atual avenida Rio Branco, em residência de Urbano Hermílio, funcionário da Fazenda, existia outro Cantão com a característica de excluir a política de sua discussão, cuidando apenas de arte e literatura. Os freqüentadores habituais eram: Alberto Maranhão, Henrique Castriciano, Manoel Dantas, os irmãos Celestino e Segundo Wanderley, Pinto de Abreu e Pedro Soares.
Outro Cantão bastante freqüentado era o da residência do bacharel e magistrado federal, Celestino Wanderley, na avenida Junqueira Ayres, de predominância familiar, pois era freqüentado por senhoras e senhoritas. Despontavam neste grupo, João Nepomuceno Seabra de Melo, Juvenal Lamartine e Manoel Coelho, entre outros.
Na mesma avenida onde morava Celestino Wanderley, existia outro Cantão, o da residência do coronel Gaspar Monteiro, irmão do jornalista e político Tobias Monteiro, onde se reunia um grupo pouco numeroso, porém selecionado, destacando-se Westremundo Coelho, Umbelino Melo e Nascimento Castro. Discutia-se predominantemente a luta política.
Não muito longe dali, na Rua da Palha, atual Vigário Bartolomeu, existia o Cantão da Potiguarânia, nome de um bilhar de Ezequiel Wanderley. Era o Cantão mais descontraído da cidade, freqüentado na sua maioria por jovens, que trocavam idéias sobre arte, literatura, jornalismo, tudo, enfim, que no momento atraísse a atenção da cidade. Freqüentavam religiosamente este Cantão: Uldarico Cavalcante, Antônio Marinho, Gothardo Neto, Sebastião Fernandes, Ferreira Itajubá, Pedro Melo, Aurélio Pinheiro, Cícero Moura, Celestino e Segundo Wanderley, José Pinto, Francisco Palma, entre outros.
Na Ribeira, existiam dois Cantões: o da farmácia do comendador José Gervásio de Amorim Garcia, localizada na antiga Rua do Commercio, atual rua Chile, e outro nas proximidades do Hotel Internacional, o mais importante da cidade, situado à avenida Tavares de Lyra, esquina com a Rua do Commercio. Ambos eram eminentemente políticos e tinham entre os seus freqüentadores as figuras de Augusto Leopoldo, Antônio de Amorim Garcia, Francisco Amintas da Costa Barros, membros do “Grupo da Botica”, alusão à farmácia de Zé Gervásio, que sediava as reuniões da facção do Partido Conservador, liderada pelo Dr. Tarquínio Bráulio de Souza Amaranto, três vezes deputado geral, que fazia oposição ao “Grupo da Gameleira” desde a morte do chefe do Partido Conservador, Cel. Bonifácio Francisco Pinheiro da Câmara, ocorrida no ano de 1884, quando o Partido Conservador no Rio Grande do Norte ficou dividido em duas facções: a do “Grupo das Gameleiras” e a do “Grupo da Botica”.

In O Potiguar, ano I, Nº 5, abril/maio de 1998.







À sombra de frondosas árvores, os Cantões
Antônio Fagundes

Os costumes de uma época enraízam-se de tal modo no espírito humano que se tornam uma característica.
Somente a evolução através do tempo poderá tornar-se agente transformador, substituindo os antigos por novos hábitos, na sociedade.
Em sua residência, o Vigário Bartolomeu costumava receber os amigos, à tardinha, na calçada, à sombra da própria casa, segundo hábito daqueles tempos em Natal, cidade provinciana. Ali, eram dispostas cadeiras constituindo as tradicionais “rodas” para as “prosas”, hoje denominadas “bate-papos”, as quais se prolongavam até certas horas da noite.
Essas “prosas” eram comuns nas calçadas das principais residências da cidade, ou à sombra de frondosas árvores existentes nas praças, destacando-se a do “Cantão da Matriz”, sob majestosa gameleira da Praça da Alegria, hoje padre João Maria, próxima à Matriz, e a da “Botica”, situada à rua do Comércio, hoje rua Chile, formada na farmácia do Dr. José Gervásio de Amorim Garcia, político em evidência naqueles tempos. Eram elas os pontos de reunião dos principais da terra, onde se tratava de assuntos de interesse político-sociais.
No “Cantão”, reuniam-se os que obedeciam à chefia política do padre João Manoel de Carvalho, sendo freqüentadores assíduos, além de outros, o comendador Joaquim Guilherme de Souza Caldas e o coronel Felinto Elísio de Oliveira Azevedo. O da “Botica” era chefiado pelo Dr. Tarquínio Bráulio de Souza Amaranto. Nele, encontravam-se os Garcia – José Gervásio de Amorim Garcia, proprietário da farmácia e parentes, inclusive Francisco Amintas da Costa Barros.
Nessas “rodas”. passavam-se em revista os acontecimentos da cidade e do país, sociais e políticos, quando não constituíam mero passatempo entre amigos, no relato de anedotas, na decifração de charadas ou tornando-se oportunas para as partidas do jogo de gamão ou de dama.
Os casos políticos eram nelas ventilados, analisados, discutidos e consertados os planos, enquanto (...) surgiam os planos para os conluios político-partidários. Dir-se-ia que elas bem sintetizavam a vida social da cidade. (...)

In O Vigário Bartolomeu (Traços Biográficos). Natal, 1976.




O carnaval na Rua da Palha
Umberto Peregrino

Quando comecei a me entender de gente, o carnaval de Natal era na rua da Palha (hoje Vigário Bartolomeu), no trecho compreendido entre a rua Ulisses Caldas e a praça do padre João Maria. Instruirei os que não conheceram Natal desse tempo. Era um trecho de uns 300 metros, em moderado declive, as casas todas residenciais, distendidas inteiriçamente no alinhamento da rua.
As janelas numerosas, à razão de cinco ou mais por casa, eram observatórios privilegiados e ficavam sempre repletas. À calçada, punham-se cadeiras que dilatavam a área de conforto dos moradores da rua da Palha...
E, assim, brincava-se uma brincadeira quase inocente, que consistia em circular rua acima, rua abaixo, distribuindo confetes e seringadas de lança-perfume. Quase todos procuravam acertar o jato de lança-perfume na vista uns dos outros, pelo que as crianças se apresentavam em geral protegidas com uns óculos tipo aviador.
Havia abundância de mascarados com a preocupação do engraçado. Podia ser que nem sempre despertassem o nosso riso abundante, mas bem que mereciam uma comovida admiração esses bravos foliões. Como deviam padecer sob as cômicas caracterizações que escolhiam: às vezes, conduziam objetos mortalmente incômodos; outras vezes, afivelavam máscaras martirizadoras como enormes cabeças de bichos; por vezes, ainda, enfiavam roupas antigas, pesadas e sujas, sob as quais suavam em profusão. E havia, também, os que adotavam disfarces raciais e, então, se tisnavam densamente.
Sinceros e resolutos foliões! Para eles, o carnaval era uma breve oportunidade em que podiam dar vazão a sua sopitada vocação crítica.
O que havia, porém, de mais expressivo no carnaval de Natal ao meu tempo de menino, era o misterioso “Zé Pereira”. Misterioso, sim, porque provinha de um clube de rapazes da sociedade, os quais saiam à rua uma única vez por ano, no sábado de carnaval, à meia-noite. Partiam do Natal Clube e percorriam toda a cidade num bonde especial, que, àquela época, os automóveis eram raros e precários.
Lá em casa, os meninos eram postos a dormir na hora do costume, às 7 horas, mas, em verdade, ficávamos numa vigilante excitação íntima. Até meia-noite, todavia, o sono já nos havia vencido, de sorte que quando estalavam os clarins do “ Zé Pereira” e o bonde se movimentava na nossa rua, bem perto do Natal Clube, éramos levados à janela tontos de sono, olhos pesados, mente turva.
O “Zé Pereira” passava rapidamente, era uma imagem breve e confusa. O que se prolongava era o ressoar da sua música; era, sobretudo, o bombo predominante. E durante os três dias, todos entoavam os versos do “Zé Pereira”:

“Viva o Zé Pereira,
Que hoje à rua sai.
Quem não come, cheira;
Quem não tomba, cai:
Zimbararal! Zimbararal!
Viva o carnaval!

In Crônica de uma cidade chamada Natal. Editora Clima. Natal/RN, 1989.





Grande Ponto
Luís da Câmara Cascudo

O Grande Ponto tem uma história bem diversa da que suponhamos existir. É, incontestavelmente, a situação geográfica mais popular da cidade. Localiza, fixa, delimita. Todo natalense conhece o Grande Ponto. Nada recorda o nome. Entretanto, é inegável para toda população - "Você se encontra comigo no Grande Ponto", "Vamos chegar no Grande Ponto". Contudo, o que era denominado de Grande Ponto desapareceu há mais de meio século. Era uma casa comercial, de duas portas para a Rio Branco e três para a Pedro Soares, que, depois de 30, tomou o nome de João Pessoa. Essa mercearia era de propriedade do português Custódio de Almeida, mercearia afreguesada, com algumas mesas para se tomar cerveja; no salão ao lado, dois bilhares utilizados pelos devotos dos divertimentos. Não era o lugar freqüentado por meu grupo, que, nessa época, década de 20/30, preferia o Bar Majestique, antes chamado de Potiguarânia, o grande bar da minha geração, situado na rua Ulisses Caldas, e freqüentado por jornalistas, professores, literatos. Também freqüentamos o Bar Delícia, na Praça Augusto Severo. Estes eram os dois pontos mais freqüentados em Natal, na época. A minha geração toda passou por lá: Othoniel Meneses, Jorge Fernandes, etc.; era o bar - o Majestique - da bebida, da classe média, da intelectualidade. O Grande Ponto, ao contrário, era um lugar de passagem, uma fixação puramente topográfica. Era, na geografia da cidade, ponto fixo. Grande Ponto foi denominação daquela esquina e aquela esquina se tornou imóvel e catalisadora nas memórias. Havia, porém, uma outra esquina - para quem estuda trânsito, a posição das esquinas tem uma grande função delimitadora de bairro e fixadora de local - a qual Djalma Maranhão denominou-a de "esquina do mundo", a esquina da Tavares de Lira com a rua Dr. Barata. Ele a chamou de "esquina do mundo", pois era a Ribeira o bairro socialmente mais conhecido, e a esquina o ponto, além de um dos mais conhecidos também, o de mais fácil indicação. Dizia-se: "Você se encontra comigo na esquina do mundo." Era a esquina da Tavares de Lyra.
Quanto ao Grande Ponto, eu, muito acidentalmente, passava por lá; e quando isto ocorria, bebia-se cerveja assistindo ao jogo de bilhar - aí por volta de 23, 24, 25. O português Custódio de Almeida, dono da mercearia e casado com uma filha do Capitão, mais tarde Coronel Toscano de Brito, era exatamente relacionado, simpático, grande conservador, conversava muito, sempre vestido de branco, baixo, grosso; depois de 30, mudou-se para o Recife, onde abriu uma mercearia diante do mercado São José.
Mas o nome Grande Ponto permanecia na fachada de seu edifício, que dava para a Rio Branco. E era também um grande ponto. Por ali cruzavam-se os bondes elétricos. Pela rua Pedro Soares, então João Pessoa, vinham os bondes de Tirol e Petrópolis. Pela Rio Branco, chegavam os da Ribeira e Alecrim. Cruzavam-se todos no Grande Ponto. Era o ponto de encontro. Depois de 30, ficou famoso pelos políticos, partidários, eleitorado, que se reuniam no Grande Ponto. Era o chamariz. Os comunistas tentaram pôr o nome de Praça Vermelha, em 35. Djalma Maranhão chegou a chamar-lhe Praça da Imprensa. Mas o povo defendeu sua preferência, que era Grande Ponto. E o Grande Ponto marcava a situação topográfica da cidade. Todo mundo sabia as tabelas de táxis e o pagamento de bonde da Ribeira ao Grande Ponto, do Alecrim ao Grande Ponto, de Petrópolis ao Grande Ponto, do Tirol ao Grande Ponto. Não tinha outra localização. Não se falava na casa de Ângelo Roselli, onde está, hoje, o Hotel Ducal, que era um palacete, habitado por um parente dele, deputado e um dos primeiros advogados da cidade.
Também existia, nessa época, o Natal Clube, maior centro social da cidade, situado na outra esquina. À tarde e à noite, jogo de pôquer, copas. Porém o nome que de fato subsistia era o da mercearia de Custódio de Almeida, o Grande Ponto, que ficou.
Grande Ponto. Há 50 anos não se escutava a sua história. Mas o próprio Aldo Pereira aludia à situação topográfica dizendo, "Grande Ponto", e não existe, em Natal, topônimo mais conhecido que ele, mesmo nas gerações posteriores, e que não alcançaram aquele edifício de Custódio de Almeida - cujo caixeiro, Amaro Mesquita, trouxe outro episódio emocional: caixeirinho moreno, pobre, humilde, varrendo a calçada, parava o movimento da vassoura e dizia: "Nesse lugar vai ser o meu sobrado" ou "eu farei aqui o meu sobrado". E fez. Construiu um edifício de vários andares, botando abaixo a mercearia da esquina na época, o maior sobrado de Natal, e que ainda hoje está aí. O caixeirinho Amaro Mesquita chegou a ser um grande comerciante de Natal. Mesmo o sobrado, ninguém dizia: "Você se encontra comigo em Amaro Mesquita". Os cafés, os bares já existiam na rua João Pessoa. Também ninguém se referia a eles. Só se falava: "Você se encontra comigo no Grande Ponto". E o Grande Ponto não existia mais. Contudo, era uma presença e continuação. Este é o meu depoimento.

Natal, 11 de junho de 1981
Luís da Câmara Cascudo

In Grande Ponto - Antologia do Laboratório de Criatividade/UFRN - 1981




O ontem do meu tempo no Grande Ponto
Odilon de Amorim Garcia

Desde o tempo em que eu comecei a tomar conhecimento das coisas da vida que o ponto nevrálgico de Natal foi o Grande Ponto.
O Grande Ponto era uma encruzilhada situada entre a Avenida Rio Branco e a Rua Pedro Soares que, depois da Revolução de 30, mudou o nome para Rua João Pessoa. Em cada esquina desta encruzilhada, existia uma edificação marcante. De um lado, ficava o “Café Avenida”, de Seu Andrade, local de encontros, de pequenos lanches, e onde se tomava um bom caldo de cana, e a casa residencial da viúva Dona Sinhá Freire. Do outro, o mais antigo e tradicional clube social da cidade, “O Natal Clube”, e a casa residencial do Dr. Alberto Roselli. Em frente ao “Café Avenida” e a casa “das Freire”, se reuniam os mais heterogêneos grupos de “habituês” para uma tradicional conversa de fim de tarde. Eram comerciantes, profissionais liberais, desembargadores, professores, etc...
Por esta encruzilhada, passavam todas as linhas de bonde da cidade, único transporte coletivo existente na época. A linha do Alecrim, que subia a ladeira da Avenida Rio Branco em direção à Ribeira, retornando pela Praça João Maria e voltando ao Alecrim. Havia também a linha Circular, que descia a Rio Branco no sentido da Ribeira, voltando pela Praça João Maria, e retornando à Ribeira. Na esquina, defronte ao “Café Avenida”, depois “Café Grande Ponto”, era o ponto inicial das linhas dos bondes para os bairros de Petrópolis e Tirol, que se localizava, exatamente, junto à calçada de um prédio que na parte térrea tinha uma confeitaria de propriedade de um Sr. Guerra, e na parte superior, o consultório do Dr. Onofre Lopes. Estas duas linhas seguiam pela rua João Pessoa até a esquina da praça Pedro Velho, quando, então, se bifurcavam, tomando cada uma a direção do seu respectivo bairro. Os bondes de Petrópolis se caracterizavam por uma luz verde, de cada lado do nome do bairro, e os do Tirol, por uma luz vermelha. Era somente para esses quatro bairros que existia condução.
Hoje, procurando recordar alguns momentos memoráveis daquele local tão vivenciado por muitos companheiros da juventude, fazemos uma viagem no tempo, um evocar melancólico dos dias idos. Nunca se deve mexer em coisa antiga, mas, às vezes, é bom trazer de volta um passado que alegrou a nossa mocidade.
No Grande Ponto, vivenciei muitos fatos e momentos interessantes da minha vida, nesta nossa belíssima cidade de Natal.
Quando da Revolução de 30, houve um movimento da mocidade estudiosa, que pensava em transformar o mundo, liderado pelos alunos do Atheneu, que arregimentou alunos dos vários Colégios da cidade para uma passeata pelas ruas, como um protesto pelo assassinato do presidente João Pessoa (os governadores de Estado eram chamados de presidente), um dos líderes revolucionários. Nesta época, eu tinha uns 10 anos e estudava no Colégio Santo Antônio, dos Irmãos Maristas, que funcionava ainda na Rua Santo Antônio, junto à igreja, que também era incluída como estrutura do colégio. Todos nós, do colégio, fomos arrastados com o restante dos estudantes dos vários estabelecimentos, Atheneu, Marista, Colégio Pedro II (do memorável professor Severino Bezerra) e de alguns grupos escolares, pelas principais ruas da cidade, num sonho utópico de contestação de liberdade e de conquista do poder, terminando em pleno Grande Ponto, cantando, ajoelhados, o hino que tinham composto em homenagem a João Pessoa:

João Pessoa, João Pessoa,
Bravo filho do sertão
O teu vulto varonil
Faz vibrar o coração do Brasil
Tua glória espera um dia
A tua ressurreição.

Os anos se passaram, e, um dia, volto eu de Recife, formado em Odontologia, e depois de uns anos com consultório na Ribeira, verifiquei que o progresso da cidade estava se desenvolvendo na Cidade Alta. Imediatamente, abandonei o Edifício Aureliano e me mudei para a Cidade. Montei, então, meu consultório na Rua João Pessoa, no “Edifício Rian”, que foi construído pelo comerciante Amaro Mesquita, junto ao antigo “Café Avenida”, agora já com o nome de Grande Ponto. O nome “Rian”, dado ao edifício, significava o contrário a Nair, esposa de Amaro Mesquita.
Eram meus companheiros, com consultório no Edifício, as grandes e saudosas figuras humanas do meu colega e amigo Sílvio Tavares, uma ausência marcante, e o médico Dr. João Tinoco Filho.
Na parte térrea do Edifício, funcionava a “Confeitaria Cisne”, de Múcio e Rossine Miranda, cujo garçom era o antológico José Américo, que chegou a ser candidato à Câmara Municipal.
A “Confeitaria Cisne” era o local preferido pelos amantes de um bom e necessário drinque, para acalmar os espíritos. Ali, se reunia a nata da boemia natalense e de todos aqueles que, homens de espírito, sentiam a alegria de uma conversa, mesmo sem a necessidade de uma cerveja ou uma dose de uísque. Existia tempo para todas as conversas do mundo dos nossos horizontes, naquela época, inatingíveis. Era um tempo sem angústia, sem medo e, principalmente, sem pressa.
O comércio da cidade fechava geralmente às 17 horas e, logo depois, começavam a se formar as diversas rodas para o bate-papo até o horário do jantar, e restabelecido por volta das 19:30 até às 21:00 horas. Nesta hora, se dizia na época, “se soltavam as feras”. Era a hora que todos tinham que deixar as suas namoradas, retornando ao Grande Ponto.
Passei a conviver, diariamente, com a intensa movimentação do Grande Ponto. Só trabalhava até às 17 horas, pois neste horário começavam a chegar os freqüentadores assíduos, amigos e conhecidos, para as conversas e as novidades do dia. Havia tempo para tudo. Principalmente o encantamento por uma cidade e os delírios de uma mocidade cheia de sonhos, que se tornava grande aos nossos olhos. Estavam sempre presentes as figuras mais expressivas de uma geração: Armando Fagundes, Rossine Azevedo, Rômulo da Fonseca Miranda (Rômulo Minha Gata), Genar Wanderley, Alvamar Furtado de Mendonça, Humberto Nesi, Protásio Mello, Luiz Tavares, Carlos Bengne, João Cláudio Machado, Zé Herôncio, Djalma Maranhão, João Alfredo Pegado Cortez (o conde de Miramontes), Luiz Maia, Alínio Azevedo, Marito Lira, Dácio Azevedo, Ernani Lyra, Veríssimo de Mello, Ebenezer Fernandes, Paulo Pires, Paulo Lira, Alberto Moura, Osman Capistrano, Lauro Bacelar, e alguns de uma nova geração, como José Alexandre, meu irmão, Jahir Navarro e outros.
Outro grupo, composto por figuras mais ilustres e com mais idade, discutiam problemas mais complexos. Gonzaga Galvão, Edgar Barbosa, Antônio Soares Filho, Otto de Brito Guerra, Alfredo Lira, e outros que a memória começa a falhar...
Um grupo de notívagos, comandado por João Cláudio Machado e Djalma Maranhão, varava a madrugada em intermináveis conversas, grupo que era conhecido como os freqüentadores da ”Universidade do Grande Ponto”.
Infelizmente, a grande maioria destes personagens já empreendeu a grande viagem, mas continuam presentes nas estórias que costumam resgatar a nossa memória.
Existiam grupos para conversas de todos os assuntos: futebol, política, religião, até de safadeza.
Também um pequeno grupo, formado pelos “artistas”, rapazes de uma geração bem mais nova, que se preocupavam em se vestir na última moda e sempre com o cabelo muito bem penteado. Eles chegavam ao cúmulo de ensaboar os cabelos e ir para a Praia do Meio, para que o sol endurecesse o seu ondulado.
Deste grupo, recordo-me de Mozart Romano, Milson Dantas, José Garcia da Câmara, Wellington Muniz, Wilton Pinheiro, Milton Fernandes, Mozart Silva. Existia um outro elemento, que era filho de Seu Andrade, dono do “Café Avenida”, mais que não me lembro do seu nome. Ele era chegado a uma briga e uns amores perigosos.
O Grande Ponto era divertido. Apareciam figuras de todos os tipos. Havia esmoler impertinente, como Maria Mula Manca, personagem que, andando de muletas, percorria, incessantemente, todo aquele quarteirão, atazanando e insultando todo mundo. Na época da política, então, se revelavam figuras excepcionais, como Capote Molhado, candidato eterno e avulso em todas as eleições, que fazia discursos homéricos, em cima de uma cadeira, sempre na calçada da Sorveteria e Restaurante Cruzeiro, e era efusivamente aplaudido pelo público gozador.
Os carnavais, que se realizavam até então na Ribeira, na Av. Tavares de Lyra, na época de 40, passou para a Cidade Alta, realizando o seu corso num grande circuito, indo pela Av. Rio Branco, Ulisses Caldas, Av. Deodoro e rua João Pessoa.
Este fato tornava o Grande Ponto um dos locais mais animados da cidade, pela convergência dos vários bares existentes: “Confeitaria Cisne”, “Casa Vesúvio” (de Maiorana), “Sorveteria e Restaurante Cruzeiro”, “O Natal Clube”, o Restaurante de Seu Gaspar, a Sede do Santa Cruz Football Club, que ficava em cima da Farmácia de Cícero, esquina com a Rua Princesa Isabel, e algumas pequenas barracas que eram armadas improvisadamente.
Eu, da sacada do meu consultório, juntamente com a minha família e alguns amigos, assistíamos, de camarote, toda essa movimentação. Sílvio Tavares, com seu constante espírito brincalhão, lançava mão das bisnagas que se usava antigamente nos consultórios odontológicos, enchia-as de água e, lá de cima, molhava os foliões que passavam nos carros fazendo o corso. Os foliões, sentados nas capotas arriadas dos carros abertos, aturdidos, não sabiam de onde vinha aquele jato d’água.
Os corsos dos carnavais de antigamente eram animados, principalmente, porque os carros favoreciam que os foliões se sentassem em suas capotas, dando ensejo que se atirasse serpentina e confete de um carro para outro, unindo os carros, numa verdadeira brincadeira carnavalesca. As luxuosas e variadas fantasias usadas pelos foliões embelezavam de uma maneira destacada o carnaval. Eram os Pierrôs, as Colombinas, os Palhaços, Chinesas, Japonesas, Índias, Marinheiros, Bailarinas, Ciganas, e uma infinidade de outras fantasias, algumas até com aspectos exóticos.
Curioso no carnaval eram as pessoas que apareciam, inesperadamente, se lançando em plena folia, a exemplo do comerciante Júlio Cézar de Andrade, um homem sóbrio, austero, ponderado, mas, às vezes, de respostas implacáveis quando se sentia insultado. Pois não é que Júlio, pai do meu amigo Dalton, num carnaval, montou o bloco da ”Manteiga Garça” (produto que ele representava), e saiu no corso, fantasiado, tentando apresentar ares carnavalescos, em cima de um caminhão, cuja ornamentação era uma enorme lata da tal manteiga, e ainda com a animação de uma orquestra de cordas, dirigida por Augusto Dourado no pandeiro?
Existiam, também, figuras que, isoladamente, pela sua irreverência, extrapolavam alegria. Era o sempre extrovertido e brincalhão Zé Herôncio, que vestido de mulher, tendo na mão um pinico cheio de salsicha, ostensivamente, com caretas como de nojo, fazia que comia o verdadeiro conteúdo que geralmente existe num pinico. E Yoyô Barros, um senhor já com certa idade, que, tocando um reco-reco, era acompanhado, espontaneamente, por um grande grupo de pessoas, cantando, insistentemente, uma canção onomatopéica: “Olha o cão, olha o cão, olha o cão do Jaraguá”.
A animação do carnaval daquele tempo deu ensejo a que as gerações seguintes seguissem a tradição dos blocos daquela época, como o “Aí Vem a Marinha” e criassem alguns outros blocos com a mesma tendência carnavalesca. Os “Kafajestes”, “Jardim da Infância”, “Puxa-saco”, “Bakulejo”, “Saca-Rolha”, “Elite”, “Ressaca” foram os blocos representativos de uma rapaziada da classe mais abastada, que faziam o corso em carros alegóricos, e costumavam, tradicionalmente, “assaltar” as casas residenciais antecipando o período momesco. Este costume dos anos 50 e 60 de assaltar uma casa, significava uma visita do bloco a uma residência, de comum acordo com o seu dono, e eram regados de muita bebida e tira-gostos, confetes e serpentinas.
E, logo depois, o tradicional local do corso mudou-se para a avenida Deodoro.
O Grande Ponto sempre foi palco de grandes acontecimentos. Durante a II Grande Guerra, começou a funcionar o “Serviço de Alto Falante”, de Luiz Romão, cujas caixas de som eram fixadas em um poste, exatamente na esquina da João Pessoa com a avenida Rio Branco, defronte ao “Café Grande Ponto”. Todos os dias, às 19 horas, o Serviço transmitia músicas, e, às 21 horas, re-transmitia o noticiário da BBC de Londres. Os freqüentadores do Grande Ponto se deslocavam para aquela esquina para ouvir as últimas notícias sobre a guerra.
Outro acontecimento da época foi o “blackout”. Durante a guerra, por um grande período, as luzes das ruas eram apagadas, ficando a cidade quase totalmente às escuras. Somente as residências tinham o direito de manter alguma luz acesa, mas com todas as vidraças cobertas com papel escuro para não passar luz.
Assim mesmo, as reuniões do Grande Ponto continuavam concorridas. Ficávamos todos conversando na penumbra, olhando, embevecidos e apreensivos, os holofotes que cruzavam o céu na busca dos aviões da esquadrilha alemã, que diziam vir bombardear Natal, por ser o ponto mais próximo de Dakar, no continente africano, onde os alemães já estavam quase dominando.
O vestuário usado tradicionalmente por toda a população da cidade era paletó e gravata, e alguns usavam chapéu, como eu, que procurava esconder a minha precoce careca. Podia ser sábado, domingo ou dia da semana, era esta a maneira de vestir. Mesmo durante o “blackout”.
Humberto Nesi não foi sempre aquela figura sisuda, circunspeta, introspectiva, como quando foi durante quase toda sua vida como Inspetor Seccional da Receita Federal. Humberto era um gozador, gostava de fazer umas estripulias, um verdadeiro “moleque”, na expressão brincalhona da palavra. Morava numa casa, ainda com seus pais, no segundo quarteirão da João Pessoa, bem perto de onde nos reuníamos. Numa noite de “blackout”, quando estávamos todos reunidos, conversando, esperando o noticiário da BBC, inesperadamente, chega Humberto, vestido somente de pijama e com chinelos. Foi um verdadeiro escândalo.
Havia casas de comércio que marcaram época, como “O Café Maia”, de Chico Azevedo, que era dirigido pelo seu filho Rossine Azevedo, nosso grande amigo. O “Café Maia”, que se especializava em moer café, era um ponto permanente de encontros do nosso grupo de amigos. Tinha a Fotografia de Namorado, fotógrafo da elite da cidade. A “Confeitaria Vesúvio” também era destaque, não só por duas mesas que existiam por trás de um grande armário cheio de bebidas, e era assiduamente freqüentada por alguns fregueses, como Joaquim Luz, Otto Júlio Marinho, Paulo Pires e outros, e sempre servidos pelo próprio proprietário, Francisco Maiorana, mas também pela presença do seu filho, Rômulo Maiorama, um rapaz metido a “dândi”, muito apreciado pelas mocinhas casadoiras. Anos depois, Rômulo foi para Belém do Pará, tornando-se um homem rico, até dono de jornal. Infelizmente, desapareceu muito cedo.
Ainda hoje permanece, no chamado pé de escada do consultório do Dr. Onofre, um senhor desta época, com mais de 80 anos, que tem o ofício de gravador. O senhor, religiosamente, pode ser encontrado neste local, todos os dias, das 8 às 18 horas, gravando medalhas, placas de metal, relógios, etc.
Assim era o Grande Ponto.
Velhos tempos. Quanta coisa a ser lembrada e relembrada num mergulho que, quase sem querer, damos no passado das nossas memórias. Quanta saudade desses dias, que, infelizmente, é inteiramente impossível, no tempo e no espaço, voltar atrás.









O Grande Ponto
Manoel Procópio de Moura Júnior

O Grande Ponto é a denominação de uma parte no centro da cidade, localizada na Rua João Pessoa, precisamente entre a Av. Rio Branco e a Rua Princesa Isabel.
Em 1845, a atual rua João Pessoa era uma pequena artéria compreendida entre a rua Vaz Gondim e a Av. Rio Branco. O Presidente Sarmento (Casimiro de Morais Sarmento) determinou a ampliação da atual rua João Pessoa, derrubando a mata existente até a rua Princesa Isabel. Após esta derrubada, a atual Princesa Isabel passou a chamar-se Rua dos Tocos, enquanto a parte ampliada da atual rua João Pessoa, passava a se chamar Rua Sarmento.
Anos depois, quando a Rua Sarmento já atingia a atual Av. Deodoro, recebeu, em 13 de fevereiro de 1888, a denominação Rua Visconde de Inhomerim (Francisco Sales Torres Homem). Este nome se conservou até o início de Século XX, quando passou a chamar-se Rua Coronel Pedro Soares, para finalmente, já na década de 1930, chamar-se Rua João Pessoa.
O espaço da Rua João Pessoa, compreendido entre a Rua Princesa Isabel e a Av. Rio Branco, ficou conhecido como Grande Ponto, em razão de um Café, com este nome, localizado na esquina da Av. Rio Branco com a João Pessoa, onde hoje está localizado o Edifício Amaro Mesquita.
Era um ponto de encontro dos habitantes da cidade do Natal. Nesta “Universidade” popular, reuniam-se intelectuais, esportistas, políticos, jornalistas, estudantes e um sem número de prisiacas. Era uma fonte inesgotável de comentários, boatos e muita conversa fiada que invadiam a nossa pequena Natal.
Anos depois, a denominação Grande Ponto atingiu toda a extensão da rua João Pessoa. Entretanto, os seus freqüentadores, vestindo camisa sileque (slack), concentravam-se no espaço delimitado pela rua João Pessoa com a rua Princesa Isabel.
Neste ponto, além das prosas e chorumelas dos seus “habituês”, algumas casas comerciais se destacavam como a Confeitaria Helvética e o Bar e Confeitaria Cisne, ambas de Múcio Miranda, com seus garçons Enedino e Zé Américo; o Foto Grevy, de Grevy Germano, depois Real Foto, de Valdemir Germano; o Café Maia, de Rossini Azevedo e a Sorveteria Cruzeiro, de “Seu China”.
No outro lado da rua, estava situado “O Botijinha”, lanchonete sem porta e sem tranca, de Jardelino Lucena, com a Sede do Santa Cruz F.C. no andar superior; a “Casa Vesúvio”, de Francisco Maiorana; a “Loja Seta”, de Nevaldo Rocha; o Caldo de Cana do Raimundo e; a “Casa São Geraldo”, de Dona Dolores, além do “Portão Brasil”, local onde Alcino Augusto Guedes gravava em metais, instantes já esquecidos pela inconstância das almas.
Falar no Grande Ponto é relembrar as festas folclóricas promovidas por Djalma Maranhão, humanista que marcou um “grande ponto” na administração de Natal. É lembrar, também, as ameias de observações localizadas no Acácia Bar, na Confeitaria de Aracati, no restaurante Dois Irmãos e no Natal Clube. É lembrar um tempo de tranqüilidade, onde a maior ameaça era o boato.
Lamentamos que o Grande Ponto tenha seguido a mesma destinação dos bondes, cujos trilhos riscavam seu chão. Foi desaparecendo com o tempo, devagar, devagar, até que, sem que ninguém percebesse, encantou-se.
No Grande Ponto, todos os problemas eram resolvidos. Lá, seus assíduos freqüentadores solucionavam suas quizilas. Alguns, já “libertados pela lei da morte”, outros, por pirraça, continuam marcando presença, buscando nos labirintos das lembranças, os bons momentos vividos na Rua João Pessoa, bem ali... no Grande Ponto.






Grande Ponto Djalma Maranhão
Marcos Maranhão

Nenhuma homenagem às quais a cidade deve à memória de Djalma Maranhão (que deveria ser lembrado todos os dias pela mídia, como esportista, jornalista, protetor do folclore e idealizador dos grandes projetos da cidade), nenhuma fala mais ao meu coração que a que se presta no centro da cidade com o nome de Djalma Maranhão.
As cidades antigas tinham seu lugar sagrado, no centro, na Ágora em Esparta, na Acrópole em Atenas, no Capitólio em Roma. Ali, os cidadãos se reuniam e faziam discussões sobre os assuntos mais importantes, divertidos e esportivos da cidade. Na Acrópole ateniense, realizavam-se as grandes festas de Dionísio, Deus grego da alegria e do vinho.
No Grande Ponto de Djalma Maranhão realizavam-se as grandes comemorações como a vitória da seleção brasileira em 1958. Os grandes carnavais, com a orquestra do maestro Jônatas, o Bambelô de Guedes, o Araruna de mestre Cornélio, os índios de Bum-Bum, as Lapinhas, os Fandangos, a Nau-Catarineta de Caldas Moreira. A figura patriarcal, cheia de bonomia, amizade e prestatividade de Câmara Cascudo. A Confeitaria Cisne.
Neste Capitólio, onde pontificava Djalma Maranhão, acompanhado de manhã, de tarde e por algumas horas da noite, por mim, seu filho, Marcos Maranhão, víamos desfilar a alma da cidade. João Machado, Celso da Silveira, Deífilo, Augusto de Souza, Djalma Cavalcanti, Ticiano Duarte e seu pai Temístocles, Newton Navarro, Enélio Petrovich, Meira Pires, o velho brabo Jonas, Jayme Wanderley, Boanerges Soares, Berilo, Gumercindo Saraiva, Adalberto, Chagas, Expedido Silva, Paulinho Oliveira, os freqüentadores da Casa Vesúvio, de Maiorana, Bosco Lopes, Benivaldo Azevedo, Luizinho Doblechen, Paulo Maux, José Areia, Severino Galvão, Luís de Barros, Maria Mula Manca, Moraes Neto, Nilberto Cavalcanti e seu irmão Ney, Evaristo de Souza e seu violão. José Alexandre Garcia.
Finalmente, todo o espírito da cidade capitaneado por Djalma Maranhão. Tendo ao lado Oswaldo de Souza, Garibaldi Romano, Moacir, Ubirajara Macedo, Newton Navarro. Djalma Maranhão, esta figura múltipla, alegre, paradisíaca, merece ser o patrono do Grande Ponto, que agora leva seu nome justamente.
Não é apenas o Djalma Maranhão que iniciou o asfalto, a iluminação de mercúrio, calçou 70% da cidade. Mas o Djalma Maranhão folião, dos lança-perfumes, das serpentinas e confetes. O Grande Ponto era a sede do seu reino.
Djalma Maranhão, no seu posto de comando no Grande Ponto, como disse José Condé, transformou Natal numa grande Pasárgada cultural. Restaurou todos os autos populares na autêntica revalidação do folclore natalense. Lembro-me, com que saudade, dos desfiles chefiados por Djalma Maranhão no Grande Ponto, dos carnavais, dos autos folclóricos, das manifestações políticas.
Em Natal, Djalma Maranhão, como prefeito, realizou vários Congressos Brasileiros de Folclore, Praças de Cultura, Feiras de Livros. Edificou a Galeria de Arte, na praça André de Albuquerque, o Ginásio Municipal do Baldo, a Estação Rodoviária na Ribeira. Criou as Bibliotecas Volantes que disseminavam a cultura nos subúrbios. Construiu fontes luminosas e quadras esportivas nos bairros. Completou o calçamento do Tirol, Petrópolis, Rocas, Quintas e Alecrim, com paralelepípedos. Duplicou a avenida Mário Negócio, nas Quintas, possibilitando o acesso livre rodoviário em Natal. Calçou as Rocas, incluindo a grande ladeira da Igreja. Construiu o Palácio dos Esportes, edificou casas populares.
O Grande Ponto era seu posto de comando.
Para esta cidade do Natal muito querida e muito amada, nos grandes Congressos Brasileiros de Folclore, com apoio entusiasta de Cascudo, Djalma Maranhão foi o prefeito moderno que trouxe o asfalto e a iluminação de mercúrio, realizando os projetos da Via Costeira, Estádio Municipal e Anel Rodoviário.
Djalma Maranhão identificou-se com a cidade criando raízes emocionais com o seu povo e sua gente. Seus auxiliares eram amigos aos quais comandava, conduzia e convivia com afetividade. A todos levava para o Grande Ponto.
Em Natal, Djalma Maranhão foi atleta em todas as suas modalidades. Prefeito de Natal em duas administrações. Deputado Federal, Estadual, jornalista. Presidente do Conselho Estadual de Desportos. Presidente do Partido Trabalhista Nacional e Partido Social Progressista. Diretor do Jornal de Natal e Diário. Presidente da Empresa de Rádio Rio Grande. Escritor. Autor de importantes trabalhos sobre folclore, política e economia. Abordou seriamente a problemática da industrialização do tungstênio em bases estatais.
Cito Daudet: quem não conheceu Avignom na época dos papas, não conheceu Avignom. Aqui, dizem também que quem não conheceu Natal na época de Djalma Maranhão, não conheceu Natal. Tantas foram as realizações telúricas da Administração Djalma Maranhão em Natal, consubstanciadas com o povo, que a cidade se transformou em uma festa permanente, verdadeira, multicor e paradisíaca. A central era o Grande Ponto, liderado por Djalma Maranhão.
Foi ali que aconteceram as grandes manifestações políticas da cidade. Em cima da Casa Vesúvio funcionava o Fórum de Debates Djalma Maranhão, onde todos os meses deputados da Frente Parlamentar Nacionalista falavam para o povo de Natal, esclarecendo as grandes necessidades nacionais. Foi ali que o deputado Leonel Brizola denunciou o movimento de 1964 que se tramava contra o presidente João Goulart e do qual fazia parte o general Muricy.
Djalma Maranhão era plural e dionisíaco, sentimental e romântico, vivia permanentemente em contato com todas as classes sociais. Sua alegria de viver tinha o condão de aproximar as pessoas. A este traço era aliado uma grande noção do sentimento do dever. Era chamado carinhosamente de “Caudilho”.
Continuo a sentir em Natal, cada vez mais forte, à medida que os anos transcorrem numa evocação proustiana, todas as vezes que passo pelo Grande Ponto, a presença de meu pai emoldurada num perfil de ouro e fogo, traçador de sua figura legendária.
Politicamente o nacionalismo era seu ideal. Sonhou com um Brasil politicamente livre, economicamente forte e socialmente justo. Defendia as liberdades públicas, a economia forte, o pluralismo político, a soberania nacional. Morreu no exílio. Hoje, depois de tantos anos, sua imagem de estadista, homem público de escol, escritor, poeta, político e notável administrador, começa a ser resgatada.
Como administrador, construiu uma usina de asfalto e oficinas de construção, para não precisar fazer empréstimos, terceirizar, nem contratar empresários. “Honestidade acima de tudo” era seu lema.
Hoje, o Grande Ponto Djalma Maranhão faz o grande resgate. Agradeço a todos e que esta homenagem passe a ser feita diariamente.
Viva o Brasil. Viva Djalma Maranhão.




O impeachment do prefeito
Mailde Pinto Galvão

No dia 3 de abril, o "Diário de Natal" divulgou as prisões efetuadas, noticiando a decretação do impeachment pela Câmara Municipal. Dizia a notícia:

"Às 17 horas, patrulhas do exército comandadas por oficiais, simultaneamente prenderam nos respectivos gabinetes, na Prefeitura e na Câmara Municipal, o prefeito Djalma Maranhão e o vice-prefeito Luís Gonzaga dos Santos, conduzidos, inicialmente, para o QG da Guarnição, praça André de Albuquerque. Foram recolhidos ao 16º RI, onde permanecem. Logo depois, o comando militar informava à Câmara que, sendo o prefeito e vice-prefeito comunistas, estavam impedidos de exercer os seus mandatos.
Diante dos fatos, a Mesa da Câmara solicitou do comando militar que a comunicação fosse feita por ofício, permanecendo o legislativo reunido. Já por volta das 22 horas, chegou à Câmara o ofício do coronel Mendonça Lima, nos termos da comunicação verbal anterior. Em seguida, ainda secretamente, decidiu a Câmara aceitar a denúncia do comando militar, iniciando um processo de impeachment ao mesmo tempo em que, conforme determinação do Exército, considerava vagos os dois cargos."

O mesmo jornal publicou o texto da declaração do impeachment:

"Texto da Declaração do Impeachment
É o seguinte o inteiro teor da declaração firmada pelos 21 vereadores da Câmara Municipal de Natal, em que declaram o impeachment do prefeito Djalma Maranhão e vice-prefeito Luís Gonzaga dos Santos:
`Declaramos que votamos o impeachment do prefeito e vice-prefeito por estarmos certos de que estamos defendendo a Democracia, que se define na liberdade de pensamento individual.
Tomamos tal atitude por não estarmos coagidos por ninguém e reconhecermos a plena vigência da Democracia.`
O texto da declaração, após vários debates, foi proposto pelo vereador José Godeiro, sendo aceito pela unanimidade dos edis."

O então presidente da Câmara Municipal, vereador Raimundo Elpídio, assumiu, interinamente, o cargo de prefeito.
Assim, por uma simples ordem militar, foram cassados os mandatos do primeiro prefeito e vice eleitos pelo voto popular na cidade de Natal.
Para nós, restou a sensação de que a vida fora interrompida para ser retomada entre ameaças, perdas e insegurança. A partir daquela tarde, amigos e companheiros sumiam e apareciam nas prisões. Alguns conseguiam fugir, mas apenas retardavam o momento de serem levados presos para os quartéis.
A cidade dividia-se entre vitoriosos e derrotados, entre os democratas silenciosos e os entusiastas do novo regime que eram massificados pelas promessas de redenção política e econômica para o país.
No dia 6 de abril, o "Diário de Natal" notificou a eleição, pela Câmara Municipal, do novo prefeito de Natal, almirante Tertius Cesar Pires de Lima Rebelo e do vice-prefeito, vereador Raimundo Elpídio, que já ocupava a Prefeitura. Salientava que o ato da eleição pelos vinte e um vereadores durou pouco mais de sete minutos.

In 1964. Aconteceu em abril, Mailde Pinto Galvão
Editora Clima. Natal/RN, 1994.




Era uma vez um homem
Clara de Góes

Era uma vez um homem. Era uma vez o frio. Era uma vez um homem que tinha frio. Não. Era uma vez um homem que tinha medo de ter frio. Era uma vez um homem que sabia que tinha frio mas que não era ainda. Havia uma brecha.... uma brecha no tempo, uma espécie de defasagem... de tempo... no homem, no clima, na geografia. O frio viera antes das condições atmosféricas de temperatura e pressão. E ele sabia... sabia do frio. Do frio antes do tempo que começava nele... nos ossos dele. E o homem que era grande, o corpo coberto por abundantes camadas de gordura; o homem que era como um leão marinho, desses de livro, que se espreguiçam em icebergs como se fossem dunas... tinha frio. E o que pedia (ou perdia) o homem que tinha frio, que tinha medo de ter frio, e que sabia do frio que não era ainda? Casacos? Capotes? Couro? Lã? Não. Ele pedia um par de meias.
A família decidira. Era preciso mandar a encomenda. Atender aquele último pedido... um par de meias... um contato ainda depois da prisão e antes do exílio. Mas como? As embaixadas estavam vigiadas, quem entrava ficava marcado... Mas era preciso, um par de meias... E ele lá. Na embaixada do Uruguai, à espera de um par de meias. Alguém teve a idéia, uma visita. A visita da afilhada. É criança, o risco é menor. Ela vai, leva o par de meias, toma a bênção... mais uma vez. Quem sabe... isso não se sabia. Não se sabia mas se temia e ninguém dizia e foi mesmo, a última vez.
Decidiu-se. Ia a menina. Natural, que fosse ver o padrinho, se despedir.
A menina tinha oito anos, era franzina e já aprendera o frio. Carregava-o no bucho, nos ombros, no olhar... Ela não sabia, mas sentia. Ele sabia e antecipava. E eu fui. Ela que, naquele tempo, era eu, foi.
Ver o padrinho, o prefeito, levar-lhe um par de meias. Levar os recados, as recomendações de todos, se lembrar, não esquecer, trazer de volta, aos seus, um gesto dele, habitual... o jeito de coçar o queixo (mais a papada do que o queixo) com as costas dos dedos, um olhar... alguma coisa do homem imenso como um leão marinho que se espreguiçava em dunas... as dunas de Natal. E era tanta coisa que ela devia levar e não se esquecer de lhe dizer, e não chorar, e lhe dar coragem, e tanta coisa e tão pequenos eram os ombrinhos dela, que ela se esqueceu de quase tudo. Esqueceu-se de olhar pra ele, de ter coragem, de dizer... do medo, do medo de ter medo, do medo de esquecer (quando esquecer era um jeito de trair), e ela chegou lá e fixou-se nas mãos. Alguma coisa a impedia de olhar nos olhos dele. Tinha medo do que podia ver, adivinhar, intuir, de ver fraqueza nele... nela. Então se fixou nas mãos. Prendeu-se nelas. Eram grandes e tombavam sobre os joelhos que eram largos. Ele estava de cabeça baixa, talvez porque ela fosse pequena e esse fosse o jeito de olhar pra ela, talvez por lhe pesarem os pensamentos, talvez de cansaço... Ela acompanhou-o no gesto, no modo, na inclinação da cabeça, na vida que escorria pela brecha entre a geografia e a história daquele instante que seria o último, o último encontro de um leão marinho naufragado e uma menina cuja infância não veria o mar.
Nas mãos dele, a mãozinha dela tantas vezes se abrigara, se perdera, se encontrara. Nos comícios. Nas festas de São João. Nos palanques, nas danças, num gosto de povo com cheiro de intimidade que ele lhe deixara. “Meu padrinho”, ou, apenas, “padrinho”... era como um nome mágico, uma espécie de “Abre-te Sésamo” diante da vida, da cidade, da alegria... as bandeirinhas de São João, os acampamentos, e eu me sentindo tão importante, entregando prêmios, percorrendo as Rocas, “Brasília Teimosa”, as lavanderias do Alecrim... o Baldo... Esse povo pobre não deixa Djalma em paz, dizia minha avó. Esse povo pobre... e Djalma... no olho no furacão.
Um dia foi como se não fosse... a vida de perna pro ar, o mundo de ponta a cabeça... os soldados... as casas invadidas, as vidas reviradas, as prisões... o cheiro do medo, a valentia de uns a covardia de outros, a prova da vida e da dignidade nas costas. O povo pobre se findando, o mundo ficando de longe...
Djalma foi firme. Assumiu a responsabilidade por tudo... Seu padrinho foi preso... Djalma está incomunicável. Em Recife, a tortura come solta, o pau tá comendo. Tão sumindo com os camponeses. A tortura começou, vão mandar especialistas de Recife pra Natal... Um certo capitão Lacerda... Djalma está incomunicável. As visitas ao meu pai, o cheiro de mijo dos quartéis, a revista, o medo... menos que medo, espanto. Raiva difusa... solidão.
Djalma foi pra Fernando de Noronha. Botaram Luís Gonzaga num avião. É mesmo pra matar, o homem sofre do coração, dizia minha avó que procurava na rua com quem brigar. Meu avô chegou, o velho coronel viu a filha sair presa de casa. O velho coronel que não podia com o sargento... um sargento e um cabo levaram minha filha... Mailde foi presa! O velho não agüentou, morreu depois. Djalma está melhor... parece que tem banho de sol na ilha... outros estão chegando. Mas ele sabe, sabe... que vai demorar...
Depois... Djalma na embaixada rumo ao exílio no Uruguai. E as notícias que chegavam. Djalma não agüenta o exílio. Não se adapta de jeito nenhum. Só fala em Natal. Pede mangabas... a fruta das dunas... o meu leão marinho... Tem saudade do sol, da brisa, do Grande Ponto.
Djalma tem uma banca de jornal... vende jornais do Brasil... mas está cada vez mais calado. Só fala em Natal... quer voltar...
As frases ecoavam na casa, na família que se virava como podia em um exílio diferente mas ainda assim... exílio. As frases ecoavam em meu pai que se identificava com o amigo na saudade e no amor à cidade de Natal. As frases ecoavam na raiva incontida de minha mãe que amaldiçoava a cidade que ficara pra trás. A raiva dela e a nostalgia dele... e o meu silêncio... o desamparo. A lembrança dele começou a servir de corpo a outras saudades... Meu leão marinho era como Moby Dick, carregando em suas costas os naufrágios dos outros... cada um que sucumbia, aumentava a carga dele.
Minha mãe era um poço de raiva, meu pai de saudades... e na menina, que agora sabia do frio e entendia o desamparo das mãos dele sobre os joelhos largos. Tinha agora mais tempo de lembrança do que de vida vivida ao lado dele. Mas os naufrágios aumentavam e a lembrança dele crescia e de alguma forma o corpo imenso dele, carregava aquilo tudo. Assim, a presença dele crescia. Presença de silêncio entrecortada de notícias que não passavam de frases curtas, como que a escapar de nossos ouvidos, de nosso entendimento.
E ela pensava nele, no padrinho. Um dia, chegou um presente. Uma pequena bolsa de couro... que, se dizia, “de antílope!” , com solene importância. Aquilo causou espanto. Como é que num tempo daquele se cometia uma delicadeza daquelas! Com tanto sofrimento, tanta tristeza, tanto abandono e brutalidade... uma delicadeza daquelas... uma bolsinha de couro de Antílope para uma menina, uma afilhada entre tantas que o ex-prefeito devia ter... Mas era a filha do amigo... Clarinha... E se repetia “De antílope”... E aquilo era pronunciado com solenidade: “de antílope!” como se fosse um nome próprio. E a menina correu à enciclopédia, ao dicionário à procura de antílopes... o que seria aquela palavra tão pomposa e importante... não tinha coragem de perguntar... A bolsa era pequena e macia. Foi guardada como se fora uma relíquia... e, de certa forma, era. O presente do padrinho que se reduzia, cada vez mais, a mãos desamparadas sobre os joelhos largos. Silêncio. E o enigma: ele pensava em mim? Devia pensar, pra mandar um presente... Eu tinha, então, uma existência além dos horizontes dessa língua, na qual, não mais me reconhecia? Aquele homem grande pensava na menina franzina , na afilhada, e lhe mandava, em silêncio, um presente.
Depois veio a notícia. O coração de Djalma não pôde mais. Sucumbiu. E meu pai repetia. Morreu só. Morreu só. E minha mãe respondia com a crueza de um desespero que ela mal podia reconhecer: “como sempre viveu”. Morreu como sempre viveu. Como um destino. Uma sina. Como se sempre... Mas... mas tinha o povo pobre... Esse povo pobre que não deixava Djalma em paz... teria, ele, o reconhecido por lá? A solidão dos homens... A febre no olhar....o choro de fome das crianças enlouquecendo as mães... o ventre das adolescentes vendidas nas estradas... Não se sabe.... Não se pôde perguntar... E ele não pôde dizer. Meu pai rezava e minha mãe calava a raiva surda no peito. Não chorava. Calava. Eu corri ao meu presente que vivia envolto no papel de seda em que chegara. Desembrulhei-o e fiquei segurando minha pequena bolsa de antílope, como se fosse um nome próprio que eu recuperasse como uma herança... mas não tinha existência, a sua morte. Continuava, do mesmo jeito a presença dele... nas coisas, na lembrança de uma vida que ficara entre as bandeirinhas de São João. Não lhe era permitido morrer porque sua vida não tinha sido vivida até o fim. Tinha uma brecha... E o corpo dele não passava por ali... Não tinha jeito dele ir. O meu leão marinho que se espreguiçava nas dunas de Natal continuava. Eu o levava, mesmo assim... pequena e franzina, jogando em seu corpo branco os começos abortados de minha jovem vida... ele não cabia na brecha que a morte abria... não era um problema de alma, mas de corpo... portanto continuava vivo. Tinha que continuar!
E mesmo as notícias do enterro, as últimas humilhações... “não deixaram isso”, “não deixaram aquilo”; frases de sujeito indeterminado que indicavam o anonimato covarde das ordens que perpetuavam a injustiça, a mesquinharia, a ruindade comezinha das gentes... e o meu padrinho tão grande... imenso. Imenso e frágil... “o coração de Djalma não pôde mais”. É. Não pôde mais.
Agora vira ele praça e ponto de encontro, o Grande Ponto de que ele gostava e que era referência na cidade. É tempo de alegria e, quem sabe, tempo de reconciliação. Diria meu pai, em sua fé, o tempo do perdão. O Grande Ponto... Djalma Maranhão. Não sinto alegria. Procuro, em mim, sentimentos cristãos e não os encontro. É a herança que me cabe, a herança que reivindico e da qual não abro mão. Herança que não precisa de consangüinidade nem testamento escrito. Ela me foi mandada, em silêncio, numa bolsinha de antílope, do Uruguai. Minha herança não é de família nem de partido, é herança de um destino partilhado... o destino do frio. Procuro, em mim, alegria ou sentimento triunfante de justiça finalmente feita e não encontro nada disso. Não vejo, em mim, a generosidade que, segundo dizem, ele tinha. Há o vazio dos que não voltaram. Dos corações que não puderam mais. Certas coisas não têm perdão nem volta. Minha herança, e não é fácil carregá-la, é dizer que eu não me esqueci. Que eu não perdoei. Que me doem ainda as frases e o tempo que me foi roubado, a convivência que me foi impossível... O destino abortado de uma geração não tem volta nem tem como apagar. O tempo não se recupera. E alguns não voltaram. Alguns não voltaram. E isso é imperdoável.
Sim, há o registro simbólico, o reconhecimento, o testemunho às gerações. Não me interessa. Seu corpo, de certa forma se transubstancia em praça pública e, finalmente, ele é entregue inteiramente à cidade cuja ausência o fez morrer. Inscrevem-no espaço público que era o que ele preferia. Para mim, não importa. O que me foi negado permanece... nada nem ninguém podem restituir
Não sei aonde foi parar depois de tantas mudanças e exílios, voluntários e involuntários, minha bolsinha de antílope. Carrego, no entanto, o peso das mãos desamparadas, dos pés nos chinelos, da cabeça baixa... do medo de cair no choro se o olhasse nos olhos, de vê-lo triste... o meu leão marinho arrastando pra longe a imensa carcaça que o coração não pôde suportar... mais.

Rio, 9 de novembro de 2002




Lembranças do Grande Ponto
Moacyr de Góes

Infância e adolescência foram por mim vividas no primeiro quarteirão a partir do Grande Ponto em direção ao baldo, na margem direita da Avenida Rio Branco. Mais precisamente: a casa de meu pai era separada do Cinema Rex pela casa de José Lucena, pai de Wellington, meu amigo. Assim, pode-se dizer, eu morava no Grande Ponto.
Esse tempo começou depois do levante comunista de 35 e, quando Getúlio Vargas morreu, em 1954, eu ainda estava lá.
Esse longo tempo é um largo espaço de calmaria e de um cotidiano em geral anódino, mesmo porque infância e adolescência só são valorados pelos crivos de lembranças da maturidade e da velhice. Mesmo assim, trago lembranças de vida que estão ligadas ao Grande Ponto.
O que era o Grande Ponto? Diz Cascudo1 que o nome vem de uma casa comercial de duas portas para a Rio Branco, três para a Pedro Soares (hoje, João Pessoa). Mercearia, sinuca e bar onde se tomava cerveja nos anos 20, de propriedade do português Custódio de Almeida. Depois, nome de esquina, encontro de linhas de bondes que vinham da Ribeira e do Alecrim, do Tirol e de Petrópolis. Mesmo quando a casa comercial já não existia mais, persistiu o nome Grande Ponto para definir o lugar, situação geográfica mais popular da cidade (...) presença e continuação - como ensina Cascudo. Para mim, o Grande Ponto é o espaço-tempo emocional onde eu descobri o mundo. E para mim o mundo começava em Natal, como para Cícero Dias começava no Recife.
Hoje, paro. Reflito. Anoto mais ou menos uma dúzia de momentos em que minha vida passou, significativamente, pelo Grande Ponto. Lembro.
1. A primeira lembrança está ligada ao Brasil na Segunda Guerra Mundial. Pela porta da casa de meu pai desfilou uma passeata de estudantes e populares recolhendo alumínio para o esforço de guerra. No Grande Ponto, numa clareira entre os trilhos dos bondes, estava erguida uma pirâmide de doações. Apanhei na dispensa uma chaleira e fui colocá-la na pirâmide. Ao chegar em casa, minha mãe reprovou meu gesto pois a chaleira era nova e deveria substituir a usada que, no fogão, já apresentava furos. Foi assim que, aos dez anos de idade, participei da guerra contra o nazi-fascismo - com uma chaleira.
2. A segunda lembrança é o som da mesma guerra. Eu explico. A rota Natal-Dakar colocava a cidade sob a ameaça de um possível ataque aéreo alemão. A defesa civil, então, treinava a população para deixar os bairros sob severo blecaute. O anúncio do início e do fim desse treinamento era feito através de estridente sirene que poderia tocar a qualquer hora. Entre a minha casa e o Grande Ponto, na margem esquerda da Rio Branco, ficava uma grande caixa d’água que abastecia toda a Cidade Alta. Eu sempre atribuí a localização da sirene na caixa d’água - e nunca soube, depois, se era verdade ou não. Mas o Grande Ponto, quando da guerra, me chegava também por esse som.
3. A terceira lembrança é a de um Grande Ponto que não houve. Eu conto. Do Grande Ponto para o Baldo, no terceiro quarteirão da margem esquerda da Rio Branco, ainda no tempo da Guerra, morava N., minha primeira namorada. Nunca conversamos, mas sabíamos, pelos olhares, que estávamos namorando. Uma tarde, ela passa pela minha casa e deixa um bilhete dizendo que ia me esperar no Grande Ponto. Este bilhete nunca chegou às minhas mãos e só muitos anos depois é que ela me contou essa história. Minha mãe, indormida e guardiã de minha infância, interceptou o bilhete e nunca me disse nada. Assim, foi o Grande Ponto que não houve, ou, mais ou menos, como o verso de Bandeira: a vida que poderia ter sido e que não foi.
4. A quarta lembrança do Grande Ponto me vem por um outro sentido: o paladar. Do Grande Ponto pela Rua João Pessoa, o primeiro e o segundo quarteirões são separados por esquinas de sabores inesquecíveis: o primeiro sorvete na Polar, a salada de frutas da sorveteria Cruzeiro (da qual falarei adiante) e, bem mais tarde, a primeira cerveja no Botijinha, este um misterioso bar que não tinha portas pois virava dia e noite.
5. A quinta lembrança me leva ao Natal Clube, que fazia esquina no Grande Ponto. Na cobertura, que era um amplo espaço em toda a dimensão do prédio, foi realizado um ato público em defesa da Campanha do Petróleo é Nosso. Lá, fiz meu primeiro discurso em praça pública, representando o Colégio Marista. O comício, cercado pela polícia, foi considerado subversivo. Lembro que foi nessa data que conheci o professor Luiz Maranhão.
6. A sexta lembrança me remete à sorveteria Cruzeiro, já referida. O evento é a exposição de pintura de meu primo Newton Navarro que levou o nome de um verso de Drummond: Sejamos pornográficos, docemente pornográficos. A exposição tinha como mote principal a provocação à burguesia natalense. E essa meta foi alcançada, com louvor. Pauladas conservadoras vieram de todos os cantos. A essa altura, já com fumacinhas intelectuais, eu me metia em organizações de grêmios estudantis, como a Academia Histórico Cultural, que se reunia no Instituto de Música, esquina de Rio Branco com General Osório, também no Grande Ponto.
7. Ficamos ainda na sorveteria Cruzeiro, nesta sétima lembrança. O local, aliás, é apenas um contraponto. A história mesma se passava numa casa da rua Felipe Camarão. Foi o tempo de meu longo e feliz namoro e noivado de oito anos. Então, Sinval Lopes Pinheiro namorava Branca e eu namorava Nenen (Conceição). Às noites, João Ururahy, com seus elegantes cigarros americanos, comparecia para conversar com Mailde sobre literatura e política. Às dez horas, minha futura sogra, Dona Chiquinela, nos colocava para fora, pois aquela era uma casa de família. Aonde íamos continuar o papo? Na sorveteria Cruzeiro, até o fechamento. E haja assunto!
8. O Grande Ponto funcionava em dois expedientes: um, antes do jantar, outro, à noite. As rodas formadas eram sempre de homens. Mulher que, assiduamente, freqüentava o lugar, no meu tempo, eu lembro de Nenen Pacheco, acompanhando o marido, José, e discutindo política - afinal ela era filha de Amaro Magalhães, um dos grandes líderes cafeístas da primeira metade do século 20, em Natal. Mesmo arriscando a injustiça das omissões, lá vão alguns nomes representativos do espírito do Grande Ponto: Djalma Maranhão, João Machado, José Alexandre Garcia, Leonardo Bezerra, Loril, João Ururahy, Pedro Coelho, Paulo Bittencourt, Luís Gonzaga (algumas vezes acompanhado da mulher, Lourdinha), Milton Siqueira, Boanerges Soares, Afonso Laurentino Ramos, Newton Navarro, Albimar Marinho, Ubirajara Macedo, Rivaldo Pinheiro, Aluízio Barros, Meira Pires, Eudes Moura, Alvamar Furtado, Deus (Ivanildo, filho do professor Saturnino), Abel Viana, Liliu, e tantos outros. Depois vieram novas gerações: Hélio Vasconcelos, Paulo Oliveira, Márcio Marinho, Omar Pimenta, Danilo Bessa, Brígido Ferreira, os irmãos Siminéia, Meira e Chico Lima, e foi pouco depois desse tempo que Geniberto Campos e Borginho foram aos murros por causa de discussão política.
Numa linguagem de hoje, diríamos que muitas eram as tribos e galeras. Havia também as rodas dos desportistas que discutiam remo e futebol. Nos tempos de campanha eleitoral, assinava o ponto por lá a conhecida Maria Mula Manca, destemida cabo eleitoral de Dinarte Mariz e o também conhecido estudante apelidado de Pecado, um agente duplo infiltrado pela polícia nas hostes das esquerdas. E todas as tardes, o Grande Ponto ouvia o grito de guerra do negro Cambraia, o jornaleiro mais importante de Natal, que vendendo a Folha da Tarde celebrava o milagre da sobrevivência de um jornal que não tinha um tostão em caixa.
O Café São Luiz e a Confeitaria Cisne tinham público cativos. O Natal Clube orgulhava-se de seu grupo de carteado, no qual o Deputado Djalma Marinho era figura de responsa.
Às vezes, pela manhã, na Ribeira, na esquina de Tavares de Lyra com Dr. Barata (a esquina do mundo, como chamava Djalma Maranhão), o mentiroso soltava um boato que lhe era contado à noite no Grande Ponto. E ainda com reservas de segredo. No tempo da guerra, em Natal, a notícia para ser verídica precisava ser confirmada pelo Rádio da Marinha...
9. Grandes eventos de Natal, curiosamente, evitavam o Grande Ponto como ponto fixo. Passavam pela esquina, ocupando a Rio Branco. Era o caso da Igreja e sua grande Procissão do Encontro, na Semana Santa. As imagens do Senhor dos Passos e da Virgem Maria, percorrendo caminhos diferentes, se encontravam na Praça Sete. Aí, quando o sermão era feito pelo Cônego Luís Wanderley, muita gente chorava.
O corso carnavalesco era feito na Rio Branco e depois na Deodoro, isto é, passando pela margem do Grande Ponto. O mesmo quando dos ciclos junino e natalino: a Prefeitura armava o palanque para os autos populares e folclóricos na esquina de Rio Branco com Ulisses Caldas. A primeira Praça de Cultura de Natal foi celebrada na esquina, mas, armada do outro lado, nas vizinhanças do cinema Nordeste.
10. Foi no Grande Ponto, em 1952, que eu conheci Djalma Maranhão. Ele era candidato a deputado estadual e precisava ganhar espaço no movimento estudantil. Seu aliciamento foi claro e direto. Me disse:
- Em Natal, todos os estudantes são do PSD ou da UDN, influenciados pelos pais. Tudo pequeno burguês! Convido você para vir para o cafeísmo. Café Filho tem passado de defesa da classe operária, uma história.
Aí deu-se o meu salto qualitativo do movimento estudantil para a política partidária. Daí em diante, meu caminho político foi feito junto a Djalma Maranhão: pelos partidos políticos (PSP, PTN, PSB), no jornalismo (Jornal de Natal e Folha da Tarde), nas campanhas políticas (deputado estadual, deputado federal, senador, prefeito), por duas vezes na prefeitura de Natal (Chefe de Gabinete e Secretário de Educação), nos cárceres da reação, como gosta de dizer o meu amigo Eurico Reis e, finalmente, na diáspora potiguar de 1964. Esta minha prática política nasceu no Grande Ponto, em 1952.
11. Em 1958, um forte cabo de aço suspenso no Grande Ponto atravessava a Rua João Pessoa, em frente à Confeitaria Cisne, sustentando letras recortadas em folha inteira de madeira compensada, articuladas separadamente. Ao vento, cada letra se movia com uma bela elegância. Lia-se: MARANHÃO PARA FEDERAL. Isso deve ter sido coisa de José Ribamar. Essa publicidade eleitoral trouxe um forte impacto na divulgação da candidatura de Djalma Maranhão à Câmara Federal. Lembro dele, de camisa arregaçada, em baixo daquelas letras, rindo como um menino que tivesse ganho um presente novo.
Passados tantos anos, recordando o episódio, faço uma releitura simbólica. Ele que fora chamado de Prefeito do Subúrbio, na tentativa dos conservadores de desqualificá-lo, chegava agora ao centro da cidade e chantava seus brasões como novo navegante. Tomava posse de seu chão de casa. E o Grande Ponto, como coração da cidade, aceitava-o como um dos seus. Isso ficou evidente, dois anos depois, em 1960, quando a cidade o elegeu prefeito com 64% dos votos válidos. Nos três anos e seis meses seguintes, Natal viveria uma democracia participativa, coisa que só ganharia esse conceito nas administrações do PT, após a Constituição de 1988.
Em 1962-63 fundou-se, no Grande Ponto, num velho sobrado em frente à Confeitaria Cisne, o Fórum de Debates Djalma Maranhão. Foi outra tomada de posse de seu chão de casa. Outra visão profética de uma administração que precisaria ser construída com o povo. Ali, a democracia participativa criava raízes pois a discussão era permanente sobre as grandes questões nacionais e da cidade.
Foi lá onde foi celebrado o I Congresso Nacional de Educação e Cultura Popular, com a presença significativa de grandes intelectuais brasileiros. Lembro que na sessão de encerramento havia tanta gente que o velho sobrado rangia e ameaçava desabar. Temendo o pior, Djalma Maranhão se socorreu de Marcelo Fernandes para que ele desse um jeito de desocupar o local. Valendo-se de sua criatividade de diretor de teatro, Marcelo tomou de uma bandeira nacional e gritou: "Quem for brasileiro, siga-me!" Repetindo o brado abriu caminho pela escada entupida de gente e conseguiu transferir para o meio da rua João Pessoa o encerramento do Congresso.
12. Certamente muito pouca gente ainda se lembra do dia em que o Grande Ponto falou para o mundo (e isso nada tem a ver com a Rádio Jornal do Commercio, do Recife). Foi no dia 5 de maio de 1963. Eu conto. À noite, o embaixador americano Lincoln Gordon era recebido pelo governador Aluízio Alves no Palácio do governo com um banquete e lá assinaria o protocolo de posse das novas terras compradas pela Aliança para o Progresso. Em resposta, o prefeito Djalma Maranhão foi para o Grande Ponto à frente de 40 mil pessoas (o que era 1/4 da população de Natal) e, com as bandeiras da soberania nacional fazia a denúncia e o protesto. Convidado, Brizola compareceu e com ele a irradiação do comício pela Rádio Mayrink Veiga e transmissão em cadeia com mais de cem emissoras de rádio espalhadas por todo o país. Foi assim que o Grande Ponto falou para o mundo.
Aliás, o que muita gente se lembra, é que no meio da maior vibração nacionalista e de esquerda, Brizola, que denunciava a conspiração do golpe de direita (que, efetivamente ocorreria antes de um ano, em 1964), resolveu chamar o general Muricy, comandante da guarnição de Natal, de gorila e de fujão. Isso também o Grande Ponto falou para o mundo. Aí nos caiu o céu na cabeça, como temia Abracurcix, ínclito chefe de Asterix, Obelix e outros gauleses ilustres nas suas lutas contra os romanos e normandos. O corporativismo militar uniu todas as patentes e, então foi mais fácil conspirar contra o governo legítimo do presidente Jango.
O Grande Ponto falara para o mundo, mas nada é perfeito. Já dizia a Raposa ao Pequeno Príncipe.

Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2002


1- CASCUDO, Luís da Câmara. Grande Ponto. Antologia do Laboratório de Criatividade. UFRN, 1981.




Grande Ponto 1960
Os passeios de elevador, escada rolante
e os malditos militares que mataram Silton
Petit das Virgens

Era 1960.
A casa de número 714, da Rua Gonçalves Lêdo, era muito comprida. Na frente, todos os dias, ouvíamos as guarânias "iraquitaneanas" dos ensaios do trio dos Guanabara. A porta de trás dava para a Rua Voluntários da Pátria, de frente para a casa de Dr. Temístocles Duarte, pai de Ticiano. Foi lá onde eu conheci Zequinha, um dos meus primeiros amigos natalenses: hoje, Zeca Melo. Vizinho era a escola de Dona Beatriz Cortez.
Foi lá que eu conheci Vulpiano Cavalcanti, meu primeiro amigo fora da Cidade Alta. Ele me levou até o Tirol pra me mostrar o avião que "um dia ia voar", que estava construindo na garagem da casa. O pai era médico, comunista e um perseguido político.
Há pouco tempo, fui deixar Vulpiano no cemitério do Alecrim, pertinho de papai. Quem sabe, ele está voando naquele avião que nunca sairia da garagem.
Agora, voltando à Cidade Alta, o vizinho da frente também era Zequinha e logo ficamos amigos. Eu também ainda não me chamava Petit. Somente dois anos depois, irmão Louis, um velhinho francês de Lion, que tomava conta das abelhas do Colégio Marista, aqui em Natal, seria meu professor de francês e só me chamaria de "mom petit enfant". Mamãe mesmo, até hoje, prefere chamar-me Edinho.
O Grande Ponto era para mim uma grande Nova Iorque. Eu estava chegando de Nova Cruz onde meu quintal era o rio Curimataú. Os poucos automóveis que conhecia eram o Impala de Seu Totô e a sopa (ônibus) dos irmãos Flôr. A vida andava de trem. Meu "grande ponto" era a estação. O meu mundo agreste tinha três donos: dona Joanita Arruda Câmara, a prefeita; papai, Joaquim das Virgens, o juiz; o outro era o vigário.
Natal era uma metrópole de muitos donos e minha nova morada. No Grande Ponto não passava mais bondes que hoje dão charme a cidades turísticas como São Francisco ou Lisboa. Os trilhos e os paralelepípedos ainda estavam lá, mas logo um dos donos cobriria a avenida Rio Branco de asfalto - diziam, na época, com dinheiro de Moscou. Depois disso, a Cidade Alta nunca mais teria a temperatura média de 28 graus. Meu sonho é ver um dia os bondes de volta, agora carregando os turistas até às atrações natalenses.
Em pouco tempo, adaptei-me à nova vida. Minha mãe me botou pra ajudar missa no Convento Santo Antônio. Tinha que usar uma batina roxa com um babado branco no pescoço. Eu me sentia importante. Era divertido botar incenso no turíbulo para fazer fumaça. Um belo dia, em vez de três, eu coloquei oito colheres de incenso. Na hora da elevação, foi uma fumaceira total. As pessoas todas tossindo e, finalmente, depois da missa, veio a sentença de Frei João Batista:
- Dona Sinhá, seu menino não dá pro ofício.
Comecei a fazer muitos amigos. Meus primos Flávio, Fernando, Ângela e Rosane Pípolo de Amorim, na Voluntários, eram um alento, pois também tinham vindo de Nova Cruz, onde éramos vizinhos. Logo fiz amizade com Tarcísio, filho do dono da padaria e o meu primeiro "televizinho". Era assim que a gente chamava os amigos mais ricos que já tinham televisão em casa. A vizinhança ia toda assistir. Logo eu estava cheio de amigos: os irmãos Paulo e Rui, Netinho, Aninha, Wilson Maranhão, Zilmar e os irmãos.
Um coleguinha era especial. Roberto morava num sobrado no Beco da Lama e o pai trabalhava no Cinema Rex. A gente podia entrar de graça nos filmes proibidos para menores de idade. Foi ele quem me ensinou a assobiar alto quando aparecia alguma mulher nua na tela. No domingo, depois da missa na catedral, o grande programa era assistir o seriado no Rex. Tarzan, Batman, Superman nas maravilhosas cores preto e branco.
A briga entre Dinarte Mariz e Aluízio Alves estava no auge por conta da candidatura de Djalma Marinho a governador. A disputa da memorável campanha terminava atingindo a molecada, que se divertia subindo nos telhados para colocar bandeiras verdes ou azul e rosa. Eu não podia botar lá em casa, pois papai, em sua dignidade extrema, não permitia que a casa de um juiz tivesse bandeira nenhuma. Três anos depois, ele morreria de um câncer que o devastou em 53 dias.
Aluízio sairia vitorioso e, alguns anos depois, receberia, no Grande Ponto, o senador americano Robert Kennedy. Ele representava, na inauguração da praça Kennedy, o irmão-presidente assassinado. Foi o momento mais emocionante do Grande Ponto. Pouco tempo depois, Bob Kennedy também seria morto a tiros.
Apesar da politicalha provinciana, o romantismo imperava, principalmente quando íamos à casa de Flávio Pípolo, ouvir o boêmio pai João Alfredo Amorim dedilhar o violão e cantar "teus olhos castanhos de encantos tamanhos"... à amada Dulze. À tardinha, era obrigatório tomar banho e se arrumar para ir passear no Grande Ponto. O périplo começava na calçada do Cinema Rex, mais especificamente em frente à Cruz Vermelha, onde funcionava o juizado de menores. Era lá mesmo que tinha uma banca de puxa-puxa, muitas vezes usada para arrancar dente de leite. Eu e Flávio Pípolo comprávamos o doce e íamos para a vitrine da loja quatro e quatrocentos (depois Lobrás e preparando-se pra ser Marisa) ver os carrinhos de corda importados e passear de escada rolante.
Depois tinha uma parada no pipoqueiro, antes de passear no único elevador de Natal: o do edifício São Miguel. Ele ainda existe e outro dia andei nele quando levei meus filhos para tirar retrato no Foto do Estudante, ali em frente ao Banco do Brasil. Ele ainda funciona perfeitamente com aquelas grades sanfonadas. Na volta, uma parada em frente ao Natal Clube, na Praça Kennedy, para uns saquinhos de castanha confeitada ou um algodão doce feito na hora. Finalmente, um sorvete na Sorveteria Oásis, no mesmo prédio do Cinema e da Radio Nordeste.
Quatro anos depois, viriam aqueles terríveis militares no mesmo local, arrecadando "ouro para o bem do Brazil". Com esse ouro, eles sustentaram um regime que prendeu meu cunhado quase um ano; condenou à morte meu amigo Theodomiro Romeiro dos Santos e; assassinou, num tonel, meu outro grande amigo José Silton Pinheiro, depois de uma sessão de tortura num "pau-de-arara", no Rio de Janeiro. Ambos eram da minha sala no Colégio Marista.
Nunca mais o Grande Ponto foi o mesmo.





Fragmentos de Grande Ponto
Luciano de Almeida

Grande Ponto dos sonhos de incontáveis gerações de potiguares que, em épocas diversas, se encontraram nesse logradouro para conversar, lutar, amar, protestar ou simplesmente passar.
24 de agosto de 1954: milhares de pessoas oriundas de todos os recantos da cidade, convergem para o centro do centro com o objetivo de lamentar a morte do presidente Getúlio Vargas. As portas de rolo batem ruidosamente no chão ante a ameaça dos manifestantes. O choro é convulsivo entre os populares que, com paus e ferros, riscam as tiras articuladas das portas das casas de comércio, produzindo uma sinfonia dodecafônica que causa medo a todos nós.
Enquanto isso, eu, menino, recolho avidamente carteiras de cigarros vazias depositadas nas sarjetas do Grande Ponto. São maços de Camel (a nota mais valiosa), Luck Strike, Pall Mall, Chesterfield, Hollywood, Continental, Astória, etc. No Botequim, a conversa rola solta. É agradável o odor que emana do Café Maia. Na Confeitaria Cisne, jogadores do ABC e América resolvem, no braço, a partida de futebol que restou inacabada no Juvenal Lamartine.
Fins da década de 50: os estudantes secundaristas se postam no Grande Ponto, exigindo que a direção do Cinema Rex passe um filme de graça, ameaçando depredá-lo caso não atendam a reivindicação. A direção cede; os estudantes, em algazarra, entram maciçamente no cinema.
Noutro momento, uma turma (ou turba) de estudantes sob o comando de Pecado, investem furiosamente contra um ônibus da linha Rocas-Quintas, que passa lentamente no Grande Ponto. O ônibus é forçado a sair de seu itinerário e, perseguido por centenas de jovens excitados, contorna a praça Padre João Maria, entra na rua da Conceição e é encurralado na Coronel Cascudo. Os passageiros do coletivo mal têm tempo de pular apressadamente pelas janelas; os estudantes, impiedosamente, começam a apedrejá-lo e, por fim, põem fogo no veiculo. O esqueleto calcinado permanece vários dias no local.
No inicio dos anos 60, o Grande Ponto fervilha politicamente. A esquerda discute freneticamente o destino do Brasil. As vozes vibrantes do ferroviário Vavá e do telegrafista Afrânio Noronha são ouvidas de ponto a ponto, de lado a lado, do Grande Ponto. Eles denunciam o imperialismo norte-americano, defendem a Revolução Cubana, querem as reformas de base, apoiam o governo de João Goulart.
A Praça da Imprensa é a praça do povo. Na sacada do Fórum de Debates, em cima do Vesúvio, o deputado Leonel Brizola, com arma no coldre, cospe palavras de fogo, atacando o embaixador Lincoln Gordon e o general Muricy, a quem chama de “gorila” (com o perdão dos gorilas).
Organizada em colunas de oito pessoas, desfilam desafiadoramente no Grande Ponto os operários da construção civil, à frente o presidente do sindicato, Evlim Medeiros, que grita palavras de ordem em defesa da categoria em greve na cidade de Natal.
Discretamente, passa pelo Grande Ponto, com seu fino bigode à Clarck Gable, Carlos Villa, carregando debaixo do braço toda a imprensa socialista (Novos Rumos, Semanário, Panfleto, Terra Livre, etc.). Pelé solfeja a Tocata em Fuga em Ré Menor. Dom Inácio, nosso Marco Pólo do vale do Ceará Mirim, tendo em volta Alma de Vaqueiro, Bosco Lopes, Onofre, Hélio Brucutu e outros, relata suas fantásticas viagens pelos confins do Brasil.
Em meio a isso tudo, o golpe militar é urdido à socapa pelas forças políticas reacionárias. Os espiões espionam e listas são preparadas, contendo os nomes dos que serão presos quando da vitória da ofensiva golpista em desenvolvimento.
Um casal de mulheres, de braços dados, dão a volta no quarteirão. Sinal dos tempos. O prefeito Djalma Maranhão, envolto na bandeira nacional, comemora alegremente a conquista do bi-campeonato mundial pela seleção brasileira no Chile em 1962.
31 de março de 1964, o medo é instaurado no Grande Ponto. A repressão desencadeada pela ditadura militar alcança numerosos membros da comunidade que freqüentavam o logradouro. Tempos ásperos, anos de chumbo. 1968. Fugaz primavera. Os estudantes (universitários e secundaristas) voltam a ocupar o espaço político do Grande Ponto. Em abril daquele ano, milhares de estudantes, artistas e intelectuais natalenses se reúnem na Praça das Cocadas.
Cesildo Câmara e Ivaldo Caetano denunciam a morte de Edson Luiz no Rio de Janeiro e chamam o povo para a resistência aos usurpadores do poder. Carlos Furtado e Selma se beijam e rodopiam na calçada do Novo Continente. João Gualberto e Graça Arruda passam abraçados pelo Grande Ponto. Anchieta Fernandes, Dailor, Falves, Alexis Gurgel dirigem-se para a Livraria Universitária para uma conversa de fim de tarde.
Juliano Siqueira, Bené Chaves, Sobreira, Manu, Gilberto Stabili, Ivanez, Marcos Silva e outros discutem a Nouvelle Vague, o Neo Realismo e o Cinema Novo, enquanto se preparam para assistir, no Nordeste, mais uma sessão do cinema de arte.
Com o Ato 5, soa o dobre de finados para toda a atividade política no Grande Ponto. Ponto final.




Território do menino e do homem
Ticiano Duarte

Nasci nas circunvizinhanças do Grande Ponto, ali na antiga rua Uruguaiana, hoje General Osório. Sou, portanto, um fronteiriço, e, ao mesmo tempo, filho adotivo, por assim dizer, daquela saudosa rua João Pessoa, território amado do menino que fui e do homem maduro que sou hoje.
Convocado a falar sobre o Grande Ponto, busco o verso do grande Carlos Drummond: "Com volúpia, voltei a ser menino". E nessa volta proustiana, a sensação milagrosa de regresso à coragem do capitão "marra negra", ao tempo das brincadeiras e molecagens, ao deslumbramento do menino assistindo à guerra chegar pela presença dos americanos em Natal.
Pois bem, o Grande Ponto era um mundo de beleza e de calor humano. Ali, aprendi as primeiras lições de vida. Uma das quais, inclui orgulhosamente ao meu patrimônio de honra pessoal: a de ser fiel amigo dos inúmeros que cultivei e cultivo ao longo do tempo. Foi, naquele aprendizado livre, em suas esquinas, bares, debaixo das suas marquises, fazendo conhecidos, amigos novos e inimigos ocasionais, que me fiz homem integrado a este mundo desigual e violento. Ao contrário, é bem verdade, de Robinson Crusoé e de muitos que o procuraram imitar à procura da ilha deserta, onde solitariamente encontrasse espaço para refazer ou entreter os sonhos destroçados nas primeiras caminhadas. Iniciei-me, assim, corajosamente, no processo penoso de amar e odiar, convivendo.
Naquele território de tanta dimensão sentimental, fui o menino que, com volúpia, procurou percorrê-lo, na festa dos olhos adolescentes e dos primeiros amores, bem como das profundas e amargas decepções. Vejo-o, agora, passar pela imaginação, à maneira de uma fita cinematográfica: a Sorveteria Cruzeiro, onde se decidia a sorte do mundo; a sede do Santa Cruz, onde se aprendia de tudo, as coisas boas e as pecaminosas - pingue-pongue, xadrez, cerveja, baralho. Ali, onde é uma farmácia, cujo nome não me ocorre agora, na esquina da Princesa Isabel, era a sorveteria Polar, do velho e irrequieto Aparício Meneses. O "Botijinha", de Jardelino Lucena, pai do meu amigo "Jardel", funcionava vinte e quatro horas de prontidão, quartel general das nossas andanças e peripécias, central de boatos e verdades, partida das aventuras boêmias que nasciam dali.
No bar "Cisne", de Múcio e Ademar, ou na sua calçada, aprendi com intelectuais e boêmios notívagos muita coisa que a maturidade depois me fez entender melhor. Enquanto jovens, queremos destruir com balas e forças a estrutura sócio-econômica da sociedade contemporânea e, em seu lugar, com justiça, a construção do edifício igualitário das utopias sociais. Enquanto jovens, somos muito mais inconformistas políticos. Enquanto jovens, pretendemos negar os valores do passado e do clã, rompendo com laços de família, sempre almejando a afirmação convicta e radical dos valores de rebeldia e individualismo que julgamos justos para o estabelecimento de uma sociedade sem classes.
Foi no Grande Ponto, naquela Universidade livre, que comecei a incursão maravilhosa pela inteligência dos maiores e nas primeiras leituras sérias dos pensadores clássicos. Líamos em casa os livros das primeiras bibliotecas públicas da cidade e com veleidade, nas caladas da noite, fazíamos as interpretações e análises. O Grande Ponto que assistiu à minha transformação de menino em homem maduro de hoje. Testemunha das minhas rebeldias e do meu encolhimento. Da fase que se busca a si mesmo, conforme disse com muita oportunidade Silviano Santiago: "Cada vez mais sabidos e mais racionais, empilhamos livros, conhecimentos e teorias, enquanto a ação revolucionária fica para a geração seguinte".
Mas, o Grande Ponto, de tantas coisas, de tantas saudades - perdoem o pieguismo - redescobriu em cada um de nós, anos depois, que somos feitos da mesma carne e do mesmo sangue e que ninguém arriba sozinho a ilha deserta. Que somos assim feitos para este mundo - entre Marx e Proust, isto é, entre a revolução político-social que instaure uma nova ordem e o gosto pelos valores tradicionais do nosso chão, avós e pais, seus valores sócio-econômicos e culturais.
Daí porque a lição de sabedoria que guardo do Grande Ponto. Foi ali, por exemplo, que apesar dos livros empilhados e das teorias aprendidas, de repente, como muitos, descobri a minha comunidade abandonada, esquecendo um pouco das utopias universais. Afinal, concordo com Silviano Santiago: "A comunidade, no nosso final de século, é o melhor antídoto contra qualquer pensamento ou ação revolucionários. Cultivamos o nosso jardim e descobrimos o bom senso de Voltaire".

In Grande Ponto - Antologia do Laboratório de Criatividade/UFRN - 1981





O Clube, o Treze e o Galo
José Melquíades

No tempo em que o Bar Cisne atuava na João Pessoa, no andar térreo do Edifício Amaro Mesquita, seu dono costumava, na sexta-feira à noite ou no sábado pela manhã, às vezes à tarde, colocar algumas cadeiras na calçada, para deleite dos freqüentadores. Aquele Bar Cisne, localizado bem no coração do Grande Ponto, concentração de políticos, advogados, intelectuais e desocupados, celebrizou-se por três coisas: a incorrigível fedentina do seu sanitário; o fanatismo getulista do garçom, José Américo (agravado pelo peleguismo da sua jangolotria) e; por um joguinho de bozó chamado “melé na mesa”, pelo qual o professor William Aires tornou-se o campeão dos perdedores.
Numa dessas belas tardes festivas, reunidos ali em uma cervejada, Cascudo, Saturnino, Severino Nunes e eu, depois de simbolicamente ouvirmos “o canto do galo”, que ainda ressoava nas páginas da história, discutimos informalmente a possibilidade de mandarmos cunhar uma medalha de ouro com o número 13 encimado por um galo e que essa medalha servisse de insígnia aos “iniciados”, devendo ser usada na lapela. Até então, o Clube contava apenas com 13 associados e o emblema se ajustava bem à tradição galinácea ligada à medicina, à vigilância e à roleta ou ao jogo de sorte. Treze era o número ideal: galo, o símbolo adequado.
Todavia, a idéia morreu no nascedouro, permaneceu na sugestão e não passou da calçada do Bar Cisne. O Clube aumentou o número, pois sempre que um morria ou outro se mudava, podíamos colocar um terceiro em seu lugar, sem, contudo, o substituir. Inocente era rei-vassalo enquanto “bem servisse”. E por esse tempo, só dois haviam morrido: Milton Cavalcanti e Djalma Santos.
O número 13 também possui a riqueza de sua representação na formação dos algarismos. Treze pessoas sentaram-se para celebrar a última ceia: Jesus e os 12 apóstolos. Em Londres, havia o Clube dos Treze, um sodalício fundado para combater a superstição. Uma das curiosidades mais interessantes sobre o número 13 ocorre no livro de Brawn, um matemático inglês, o qual chegou à conclusão de que, de 4 em 4 séculos, o dia 13 cai no domingo 687 vezes. Na segunda, 685. Na terça, igualmente, 685. Na quarta, 687. Na quinta, 684. Na sexta, 688. E, no sábado, 685.
Como se vê do paciente calculista britânico, o número 13 ocorre mais vezes na sexta-feira, o que tem gerado muita superstição. Escreve Melo e Souza, no Folclore da Matemática, que na antiga Constituição do Estado do Espírito Santo, não constava o artigo 13; os legisladores capixabas, supersticiosamente, suprimiram-no. Também assim já é demais.
De qualquer modo, o galo e o número 13 bateram asas, voaram do Clube dos Inocentes. E o número fixou-se em 14, depois da morte dos dois primeiros sócios. O aleijadinho, no seu “atelier da Renascença”, nas palavras de Mário de Andrade, fugindo ao número 13, idealizou, na sua maravilhosa imaginação, uma Ceia Larga com 14 participantes: Jesus, os 12 apóstolos e um soldado romano que aparece como penetra e participa da eulogia. Nosso ágape contou-se com os 14 convidados.
Ficamos por aqui, ruminado o bocado de saudade dessa memorável agremiação, que nunca mais se reuniu e permanece em fase de extinção. Seus melhores animadores já partiram para o Oriente Eterno: Milton, Djalma, Saturnino, Cascudo, João Medeiros, Ascendino. Em Natal, restam pouquíssimo: Gorgônio Regalado, Severino Nunes, José Leiros, Reginaldo Medeiros, Eulício Farias, Diógenes da Cunha Lima, Arnaldo Azevedo (meu melhor amigo, levei-o para o Clube – faleceu inesperadamente no dia 18 de setembro de 1991) e o autor destas memórias.
Feliciano mudou-se para o Sul do país. Renato voltou às suas atividades, no seu estado de São Paulo; aquele capitão-de-mar-guerra (um dos convidados de Saturnino a participar ativamente de algumas reuniões nossas – nem sei o nome) perdeu-se nas vastidões talássicas – mare proluit omnia – benedicite, e não sei se sabe se foi abençoado, pois nunca mais nos deu notícia da benedictio patrui... ad ostentationem nostram. Vale, aqui, o prazer ou a alegria de recordar aqueles tempos felizes, na conformidade da Eneida: meminisse juvabit... melioribus annis.


In Clube dos Inocente, José Melquíades
Centro Senai de Artes Gráficas “Henrique D’Ávila Bertaso”
Porto Alegre/RS, 1992.






O Grande Ponto à meia-noite
Joanilo de Paula Rêgo

Há cidades, sítios, locais, lugares, praças e ruas, envolvidos por uma atmosfera singular e misteriosa, por uma aura sobrenatural e mágica, que lhes demarcam o espírito e a alma, o fluxo e a presença, a solidão e a vida.
Dizia Camus que Tipasa, no verão, era habitada pelos deuses. Para Manuel Bandeira, Pasárgada era outra civilização... Shangri-La, para James Hilton, era a visão transcendental do paraíso na terra, uma escala no caminho de Deus. Para Baudelaire, a magia e a beleza estavam em "algum lugar", naquele pedaço insinuado no seu "Invitation au Voyage".
Em Natal, o Grande Ponto é o território encantado onde vive a alma errante, boêmia e lírica, curiosa e loquaz, da gente natalense. É um simples cruzamento de ruas. Poderia ser um boulevard, talvez seja um calçadão. Por enquanto, ainda é aquela área que se delimita pela Praça Pio X, ao Sul, onde se alteia a nova Catedral; pela praça João Maria, ao Norte; pelo Café São Luís, ao Leste; e pelo Cinema Rex, a Oeste. É o território profano de uma legenda sagrada, onde há várias décadas, gerações sucessivas elegeram aquele chão para pouso e escala das suas idas e vindas cotidianas ao trabalho e ao lazer. O Grande Ponto é a fusão, ou o "ménage à trois" da Rio Branco, Princesa Isabel e João Pessoa, justamente o epicentro do H, que forma o lendário, maldito, tradicional, eterno e imortal Grande Ponto.
Ali, é onde as coisas germinam e acontecem, onde elas adquirem vida, forma e notoriedade, principalmente a publicidade, o sussurro, o murmúrio, o comentário, a maledicência, sem que os fatos mais importantes se perderiam no vazio e os fatos mais triviais jamais alcançariam as manchetes. Ali, aportam os sobreviventes do diuturno naufrágio, as vozes de todos quantos percorrem as ruas da cidade, no desfile processional de cada dia, os passos perdidos nas calçadas, as vozes dissolvidas no anonimato das multidões.
Onisciente e onipresente, o Grande Ponto comanda a vida da cidade e das pessoas, de seus habitantes e moradores, de seus transeuntes e turistas. As coisas só acontecem e vivem se o Grande Ponto as registrar. Os acontecimentos, ali, se vestem com as roupas do sensacionalismo e as fantasias do escândalo, ou se desnudam no "strip tease" de sua chocante tragicidade e beleza.
Ali, se sabe de tudo, de todas as verdades e mentiras, de todos os atos e fatos e boatos, e, o que não se sabe, logo se conta com as tintas da verdade e do exagero, e o que não é mas poderia ter sido se inventa como se tivesse acontecido. Onisciente e onipresente, o "Grande Ponto" comanda a vida da cidade e das pessoas, de seus habitantes, de seus moradores, de seus transeuntes e de seus turistas.
Políticos, intelectuais, prostitutas, contrabandistas, profissionais liberais de todas as profissões e de todas as liberdades, pederastas e protestantes, bêbados e missionários, "minas" e coroas, adúlteras e tarados, marinheiros e vendilhões, cientistas e mendigos, aleijados de corpo e alma, santos de alma e de corpo, drogados e loucos, de nascença e de sofrimento, a virtude e o vício de mãos dadas, o bem e o mal em idílio fescenino e astral, toda essa formidável procissão de adoradores, amantes e amancebados dessa puta-vida como a chamou Gabriel Garcia Marquez, fazem dali o seu porto ou trampolim, sua bússola ou âncora, nas circunavegações que cada um faz em torno de si mesmo, para vencer as travessias do cotidiano.
O pai da pátria, o candidato, o técnico em idéias gerais, em futebol e finanças, o governador de amanhã, o ladrão em potencial, a menina que fugiu, o desastre que aconteceu, a mulher que trai, o último travesti, o velho transviado, a bailarina de nudez transparente, a "pirada" que faz tudo, o vapozeiro, o cara que inventou a máquina de economizar gasolina, o mão-boba e o bóia-fria, o sujeito que descobriu uma erva que levanta até defunto, o mago que conhece a poção e a fórmula que curam impotência, o contador de anedota pornofônica, o escriba pornográfico e o glosador fescenino, o derradeiro conto de vigário, tudo surge ali nu e cru como uma cicatriz: ou uma navalhada na carne.
Negócios são fechados com três palavras. Cantadas se consumam em um minuto e a vítima cai na primeira esquina. Ouve-se sempre a clássica "chamada" ou "armada", que é gritar o nome de uma pessoa e esperar que a vítima se volte e fique a procurar alguém que nunca se apresenta. No Grande Ponto, funciona a grande agência de informações para todos os viajantes e transeuntes, os perdidos e achados da vida...
O Grande Ponto é o tribunal maior da cidade, onde são julgados e quase sempre condenados os culpados e inocentes, e todos são condenados, porque o Grande Ponto não perdoa ninguém. Os jurados preferem jogar o bolão dentro de barro na túnica do justo a reconhecer-lhe de pronto a inocência que não é normal na criatura humana, ou melhor, na condição humana. Todos são degredados filhos de Eva... ou como diria Camus: "Não há mais inocentes ou culpados, todos somos vítimas".
O Grande Ponto é do contra. Contra-fé, contra-mão, contra-cultura, contra-ladrão, contra-razão, contra-ponto, contra-tudo. É sobretudo contra a força e a prepotência. Contra os governantes corruptos e antipáticos, os Narcisos do poder. É o território livre dos comícios, das passeatas, dos discursos e das badernas. E das tavernas. É a favor dos humildes, do injustiçado e do descamisado, enquanto permanecer como tal. Mas, se passa a ser forte, dominador e bandido, ele se volta para o outro lado. Passa a condenar quem antes defendia. É contraditório e instável como os ventos, o mar e Deus, e como a brisa vespertina que vem das dunas trazendo o cheiro do cio da terra. O Grande Ponto é o retrato da alma boêmia da cidade, alma leviana e borboleteante das ruas. A passarela de todas as alegrias e dores. Os esgotos de todas as sujeiras. O altar de todas as virtudes. Do Grande Ponto, se sai, pela mesma alameda, para a Catedral e para o retiro de Maria Boa.
O Grande Ponto é o palanque de todos os partidos, o parlatório de todos os assuntos, o pelourinho de todas as idéias, o purgatório de todos os pecados da humana criatura. É a grande tribuna da cidade. Sua voz, seu grito, seu protesto, seu incêndio e sua sagração. As passeatas políticas mais exaltadas, os oradores mais incendiários, os choques de paixões mais inflamadas, os fanatismos mais desenfreados, tudo ali assume dimensões de lenda e de canções de gesta, e as personagens parecem verdadeiros titãs surgidos de alguma mitologia bárbara. Grandes líderes de todos os tempos ali travaram batalhas memoráveis, duelos oratórios formidáveis, confrontos de força e prestígio, coragem e bravura. Pedro Velho, José da Penha, José Bernardo, Café Filho, José Augusto, Dinarte Mariz, Aluízio Alves, Djalma Maranhão, líderes do povo, voz do povo, amor do povo, vivem na lembrança, na saudade, na presença e na paixão dos que amam a sua terra e cultuam os seus heróis, com toda a força ciclópica das multidões em êxtase cívico.
Toda força, todo poder, toda magia, todo Dom divinatório, todo carisma, enfim, toda liderança vem do povo, nasce no estrume e no barro do sofrimento coletivo, se nutre da seiva e sangue das aspirações da gente, e floresce no sonho e na esperança da alma multitudinária. O povo ama seus líderes, nascidos de seu ventre trespassado por mil espadas, e por eles luta, mata e morre. O povo não segue jamais, antes condena e repudia os tiranos e os prepotentes, os donos do poder abocanhado como uma presa de guerra, os dirigentes gerados em chocadeiras e concebidos em estufas, fecundados na cama e na mesa das alcovas e restaurantes palacianos, no concubinato de interesses espúrios, de negócios ilícitos e das relações perigosas e clandestinas.
Há uma página de deslumbrante beleza cívica do jornalista Bruno Pereira, e de não menos palpitante atualidade, contra a invasão do Rio Grande do Norte por hordas bárbaras e indígenas. O Grande Ponto sempre foi cosmopolita e poliglota, ecumênico e universal. Zona Franca e Território Livre, bazar de todos os assuntos e mercado de todas as transações. Na Ribeira, existiu uma réplica do Grande Ponto, o café "Cova da Onça" com privatividade para os assuntos políticos.
O Grande Ponto lembra ainda o terminal de todas as linhas de bonde e ônibus que despejam a população migrante, e o local de onde partiam as excursões, os piqueniques e as comitivas políticas ou desportivas. Ali se comemoravam todos os festejos juninos, carnavalescos e natalinos. Os desfiles de pastorinhas, de escolas de samba, blocos de sujos, batalhas de petardos, aconteciam lá no pedaço. Era dali que partiam as caravanas de jogadores de futebol para as violentas disputas entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba, os dois mais ferrenhos adversários no Campeonato brasileiro, disputado entre as seleções dos estados. Batalhas homéricas se travavam entre as duas torcidas, numa rivalidade que não conhecia limites e exaltava os ânimos a todos os extremos. Naquelas horas as torcidas se uniam, o vermelho do América, o verde do Alecrim e o negro do ABC, mesclados numa só legenda para defender os brios potiguares contra a bazófia, a prepotência e a arrogância dos tabajaras. O estádio era um grito só: "Não paraibanizarão o Rio Grande do Norte!"
Revejo as figuras oraculares de Djalma Maranhão, João Machado, Ivanildo Deus e tantos outros que comandavam ajuntamentos e rodinhas que se postavam no meio da rua, obstruindo o trânsito, a ponto de os automóveis trafegarem em marcha lenta, pedindo licença para passarem. Ali no Grande Ponto ninguém escapou no passado, e nem escapa no presente, à navalha e à língua do povo. Fala-se muito, fala-se demais, e fala-se mal. Ali o instrumento de trabalho é a língua, como chave de todas as portas e instrumento de todas as mensagens. Quem tem língua, vai a Roma, diz o ditado, e, no Grande Ponto, a língua é açoite e carícia, para falar mal da vida alheia e prometer mistérios gozosos.
Ama-se o Grande Ponto com amor felino e sexual. Os que beberam de seu vinho e se banharam em suas águas premonitórias, que tinham suas nascentes no canal do Baldo, aprendendo a ler na bola de cristal a perscrutar os alguidares das pitonisas e a decifrar o baralho das cartomantes, e não esquecerão jamais, enquanto vida tiverem, os momentos ali vividos. Poderão desertar dele por temporadas, mas voltarão sempre, ao primeiro cochilo da mulher, sob os pretextos mais variados, como a compra dos jornais do Rio, do remédio, do encontro com o amigo para realizar um negócio importante, e até para a olhada nas vitrines e a degustação de um cafezinho.
Maior do que o amor de seus discípulos eternos é a vontade de pecar dos que nunca conheceram ou a ânsia de reincidir dos freqüentadores de outrora.
Há nomes de pessoas, bares cafés, restaurantes, sorveterias, que se perenizaram nas idades e na tradição oral. Há namoradas inesquecíveis de sonhadores imortalizados através de gerações de contadores de histórias. Há os "reitores" dessa Universidade, que são nomes famosos na cidade, os verdadeiros poetas e amantes dessa "filha de Poti mais Bela" (bela adjetivo ou substantivo), como foi batizada por um primaz da Igreja, que tanto amou esta cidade entre o Potengi e a beira-mar plantada.
Natal, à meia-noite, quando começa a viver sob a lua e o sol, o início de um novo dia, é a coisa mais bela do mundo vista do Grande Ponto.
À meia-noite, hora dos espíritos e das assombrações, das serenatas e dos presságios, Natal é uma mulher nua, amada-amante, oferecendo aos que acordados a vigiam e cantam, em versos e serestas, a ceia larga de suas estrelas cadentes e o seio largo de sua sensualidade perfumada pela brisa dos morros, de seu sexo em flor cheirando a jasmim e rosas, concha marinha aberta ao orgasmo delirante de seus apaixonados. É de lá que se vê sobre o rio a estrela da manhã. Pura ou degradada até a última baixeza, como dizia Manuel Bandeira, mas só de lá é que se vê, em todo seu resplendor embaciado, em seu brilho sujo de fumo e cachaça, saliva e esperma, lágrima e riso, a estrela da manhã sobre Natal...

In Grande Ponto - Antologia do Laboratório de Criatividade/UFRN - 1981









Cinco pequenas evocações de um ponto que era grande
Claudio Galvão

1. “O Botijinha”, cruzamento da rua João Pessoa com Princesa Isabel.

São sete horas da uma noite distante. Passam homens de paletó e gravata, chapéus na cabeça.
No alto de um poste, um alto-falante toca uma marcha militar e o locutor anuncia uma crônica de um político da cidade. A melodia ainda pode ser ouvida claramente no meu registro mental.
Meu pai me conduz pela mão ao prédio da esquina, o Café Botijinha. Por trás do balcão, “Seu” Jardelino, de branco, gravata escura, baixinho, bigode fino, sorriso.
Sentamo-nos. Um garçom de camisa branca, de mangas compridas, vem servir dois cafés pequenos no local. Uma pequena mesa de metal com tampo de mármore branco (ainda bem que Jardelino Filho conservou uma delas). Era muito alta ou eu muito pequeno?
Hoje, posso alcançá-la, pois cresci em altura e em saudade.


2. Casa Revil e Confeitaria Cisne, no meio das quadras, entre Rio Branco e Princesa Isabel.

O tempo meio chuvoso e até friorento lembra que o São João está perto.
A Casa Revil e a Confeitaria Cisne abrem suas vitrines repletas dos mais variados fogos para as festas juninas. Parece que disputavam qual seria primeiro visitada pela meninada da região.
Ali estavam, um sem número de foguetes de estouro e de apito, vulcões, chuvas de ouro, chuvas de prata e as que lançavam bolas de cores, as caixinhas de “cara-duras”, e os mais caros e inacessíveis morteiros.
Tem cheiro de fogueira no ar. E um gostoso perfume da pólvora queimada. No céu, um desenho luminoso, colorido e inesquecível. Rápido se desfaz, fugaz como o tempo, que não pôde manter acesas as vitrines da Casa Revil e da Confeitaria Cisne.

3. “O Zepelin”, esquina da rua João Pessoa com a avenida Rio Branco.
Uma simpática estrutura de madeira e metal, pintada de azul. Pequenas vitrines de vidro com cigarros e muitas coisas à venda.
Jornais pendurados. Revistas, as desejadas “Gibi”, “O Guri”, “O Globo Juvenil”. Em cada quadrinho, a possibilidade de entrar e compartilhar a ação de figuras que ainda não eram chamados de super-heróis. Ali estavam o Super-Homem, o Titã, o Capitão América, Tocha-Humana e Centelha, o Homem e a Mulher Bala, os membros da Família Marvel. Todos lutavam contra bandidos e eu não compreendia porquê.
Naquela esquina, estavam também as balas de figurinhas e os álbuns para colar as nunca completadas coleções. Mesmo assim, a meninada circulava por ali, em ansioso troca-troca, na busca das mais difíceis. Quem encheu um álbum?
No Zepelin estão pessoas que eu não conhecia, mas que se tornaram familiares. “Seu” Luís Cortez, olhos azuis, pouco cabelo; “Dona” Guiomar, sua esposa e os filhos, que ajudavam nas vendas.
O Zepelin era a fronteira para o irreal, o limite para o sonho. Assim como o grande dirigível, podia me levar para um mundo distante, fazer viver situações irreais povoadas de seres poderosos, invejados e imitados nas brincadeiras que o tempo distanciou, mas a saudade pode trazer de volta.

4. Cinema Rex
No Domingo, às nove horas, começava a sessão infantil. Um perfume gostoso de confeito (não se dizia bala). Iniciava com o “jornal”, notícias nacionais e internacionais, onde se podia ver Hitler discursando e o Papa Pio XII conduzido em uma cadeira mais parecida com um altar. Eram pessoas de minha convivência dominical.
Em seguida, vinham os “traillers”, propaganda dos filmes da semana. Depois, desenhos animados, comédias, e as “séries”, que sempre terminavam em um “episódio” e garantiam uma ansiosa volta no próximo domingo.
Às tardes, ia-se ao “matinê”, mais para a juventude. Rapazes de camisas de manga curta, as “sileques” que os americanos implantaram e cabelos penteados com brilhantina cheirosa desfilavam pela calçada da avenida Rio Branco. Esperavam a chegada das moças, vestidos apertados na cintura, sapatos de salto alto.
A sessão noturna – o “soarê” – , casais vinham de braços dados, elegantes, pois não se admitia um homem entrar no cinema sem estar de paletó e gravata.
Para se chegar ali, tinha-se que passar pelo Grande Ponto, pois aquele era o momento de desfilar, de mostrar a elegância, e tem muita gente na calçada esperando para ver.

5. O Carnaval e um pierrot
O carnaval passara da avenida Rio Branco para a Deodoro. O Grande Ponto estava apequenando, mas, para se chegar ao desfile, passava-se por ele. Por ali, circulava-se, indo ou voltando.
Esquina da Princesa Isabel com João Pessoa. Pausa para tomar um sorvete na Sorveteria Cruzeiro. Pessoas vão e voltam, fantasias e mascarados. Há restos de sambas e marchinhas pelo ar e um delicioso perfume das “lanças”, inocentes e permitidas.
No meio da rua, um pierrot de branco parou em frente à porta. Tira do bolso um lança-perfume e ensopa um lenço que leva ao nariz. Logo seus braços pendem e o lenço se desprende. O pierrot hesita, vacila e começa a cair devagar. Flutua, como que paira, leve, descendo aos poucos até o chão.
Acodem pessoas a socorrê-lo, levam-no não sei para onde.
“Era Newton Navarro”, alguém disse.

Final (in?)feliz
Passam muitos carros. Há um cheiro forte de fumaça de escapes no ar e um semáforo repetindo, monótono, as mesmas cores. Pessoas se cruzam, mas não se falam. O prédio do café ainda insiste. E o consultório do Dr. Onofre Lopes também, num outro primeiro andar. Mas, se eu quiser, ainda passam homens de paletó, gravata e chapéu, e moças bonitas que vão cinema. Tomo café com meu pai na mesa do Botijinha e vou ver os fogos que estão na vitrine.
Revejo o pierrot de branco, que aspira perfumes e depois flutua.
“Seu” Luís, chegou o Gibi?
Sei como posso sair daqui e voltar para lá. Faço, pois aprendi nas revistinhas do Zepelin como alcançar esta dimensão. E aquelas pessoas estão todas por ali, revivendo a vida serena da pequena cidade e seu ponto que era Grande.
Afinal, saudade serve para quê?






O "Grande Ponto"
Lauro Pinto*

Ontem, como ainda hoje penso, ainda perdurará por muitos anos o maior e mais movimentado ponto de reunião dos "papos" de Natal: a fortaleza denominada Grande Ponto. Lugar de reunião das conversas infindas, dos partidos políticos em assembléias extra-oficiais, dos encontros amorosos, das discussões esportivas, da exibição de vestidos novos, dos aposentados e vagabundos, das fofocas e, mais ainda, do falatório da vida alheia. Sempre foi assim, como em todas as cidades. Antigamente, essas reuniões em Natal, como nos diz o historiador General Pessoa de Melo em seu livro "Natal de Ontem", tinha o nome de - Cantões - cerca de cem anos atrás, e o principal em malícia e vivacidade era o conhecido por "Cantão da Gameleira", situado na Praça da Alegria, hoje, Praça João Maria.
Assim, o nosso Grande Ponto é o Cantão de 1870. Sendo que o de hoje é mais feroz. Ali, nada se perdoa e a língua é a mais ferina do mundo. A pessoa que passa ali - posuda - é logo taxada de corno, filho da puta, ladrão ou pederasta passivo, seja ou não. É preciso, assim, passar humildemente e a todos cumprimentar com um leve sorriso. Do contrário, o pau come, sem qualquer distinção social.
O Grande Ponto é a maior fonte de informações do Estado. Quem tem em primeira mão uma notícia sensacional, corre para transmiti-la nas rodinhas. Os fatos escabrosos são ali analisados, discutidos, julgados. As boas notícias são pouco comentadas. Quando há um boato alarmante, aquilo fica fervendo. Há gente que não passa ali de jeito nenhum, principalmente os que têm imenso rabo de palha. Conheço um natalense que freqüenta o Grande Ponto há quase 30 anos, sem ter faltado um só dia! Campeão de assiduidade e irreverência.
Ali, no Grande Ponto, existiu o maior e mais movimentado clube recreativo, o "Natal Clube", que dominou a vida alegre da cidade por mais de meio século. Muitas gerações ali se divertiram. Fundado no dia 22 de julho de 1906 e dissolvido no dia 5 de novembro de 1968, viveu, assim, 62 anos. Era uma das mais antigas sociedades de Natal, pois, antes dela somente existiam a Loja Maçônica "21 de Março", a Irmandade do Santíssimo Sacramento, a "Previdente Natalense" e a "Liga Artístico-operária".

Natal Clube

O leitor encontrará no final deste livro¹ uma fotografia muito antiga, onde figuram 36 sócios e apenas um se encontra vivo, que é o senhor João Emílio Freire, filho do antigo comerciante Avelino Alves Freire, que foi presidente da Associação Comercial. Hoje, banqueiro aposentado, reside nesta cidade.
Como em todas as sociedades, pois é difícil uma entidade viver muitos anos sem os abnegados, o Natal Clube possuía os seus, e, entre os mais esforçados, estavam: José Pinto, por muitos anos presidente, Teodorico Guilherme, Odorico Pelinca, Antônio Artur, Mário Lyra, Manoel Dantas, Clidenor Lago, Antônio Nesi, João Galvão e outros.
Os bailes, os piqueniques e os carnavais organizados por este clube eram assombrosos em organização, alegria e ordem. Todos os anos, o Natal Clube fazia o natal dos filhos dos sócios. Uma grande árvore era plantada no meio do vasto salão e a distribuição de brinquedos era generosa. Todos saíam satisfeitos. Entre os muitos piqueniques organizados, o maior, e que causou melhor impressão, foi o realizado no Engenho Cajupiranga. Seguiu para lá uma composição de trem que ia lotada. Um verdadeiro sucesso. E também, todos os anos, o clube promovia, dias antes do carnaval, um magnífico "Zé Pereira", com todos os sócios fantasiados, em um bonde enfeitado e música. O "Zé Pereira" assaltava casas dos sócios previamente determinados e eram verdadeiros banquetes, com toda sorte de bebidas, principalmente nas casas de Antônio Artur, Manoel Cristino, Odorico Pelinca e outras. Quanto aos bailes, impecavelmente organizados, eram brilhantíssimos. A melhor orquestra da cidade tinha contrato permanente. E uma coisa curiosa: não havia qualquer briga, como acontece quase sempre hoje nos clubes mais ricos da cidade. E é preciso notar que a bebida, naquele tempo, era gratuita. Hoje, se a cerveja e as demais bebidas de teor alcóolico mais elevado fossem de graça, não haveria briga, e, sim, um conflito municipal,
Para não dizer que nada houve nos bailes de antigamente, verificou-se um fato que ia degenerando em seríssimos aborrecimentos para o clube. Naquela época, já existia a invencível instituição dos penetras. A Diretoria, então, resolveu que só ingressaria no baile o convidado exibindo o convite e sem exceção. Faltava, porém, um sócio para o espinhoso cargo da Portaria, pois muitos consultados não aceitaram. Afinal, foi escolhido o Dr. Júlio de Melo Resende, conhecido por suas qualidades de homem duro, porém muito calmo e educado. O escolhido fez ver a delicadeza do encargo, de vez que as instruções eram severas. A Diretoria insistiu e o Dr. Resende aceitou a missão. Naquela época, os bailes começavam às 21 horas e, já às 19, o Dr. Resende estava no posto de sacrifício. Alguns penetras foram barrados sem qualquer problema. Mas eis que chega um automóvel com o Capitão dos Portos, fardado, acompanhado da esposa e duas filhas. Na porta, foi exigido o convite e o militar disse que havia deixado o mesmo, mas se não tivesse sido convidado, ali não estaria. O Dr. Resende disse então que a família entraria, mas que ele voltasse para apanhar o convite. O Capitão dos Portos não aceitou a sugestão, e o "bolo" estava formado. Começou a juntar o pessoal do sereno. A Diretoria, como era de se esperar, interveio em favor do ilustre marinheiro. Entraram. E o Dr. Resende, sem perder a calma, apanhou o chapéu e deu o fora.
Depois dos dias mais gloriosos do Natal Clube, sócios mais jovens tomaram conta da sociedade, que, embora sem o brilhantismo de antigamente, foi teatro de muitas festas. Edificaram, então, a nova sede. Depois, o clube foi declinando em festas e florescendo em jogos. Transformou-se em sociedade anônima. Quando o prédio estava muito valorizado, foi o mesmo vendido e o clube morreu. Desapareceu uma das maiores tradições da cidade.
Da esquina do Natal Clube, partiram, no dia 14 de janeiro de 1923, em reide pedestre Natal-Rio-São Paulo, os escoteiros José Pessoa, Humberto Lustosa da Câmara, Henrique Borges, Aguinaldo Vasconcelos e Antônio da Silva, da sociedade "Escoteiros Andantes". Chegaram no Rio no dia 2 de agosto, e, em São Paulo, no dia 2 de setembro de 1923. Este reide não foi um passeio a toa, e, sim, tecnicamente organizado, estudado e planejado. O itinerário teve de ser previamente aprovado pela Federação dos Escoteiros de São Paulo. Não é possível dizer em poucas linhas o quanto de sofrimento e sacrifícios agüentaram nossos "raidmen" pelo longo caminho. Picadas de mosquitos, encontro com índios, febres, ferimentos, sede e fome. Afinal, venceram. E a recepção, em São Paulo, foi a maior já verificada na história do escotismo. Basta dizer que o povo se aglomerou na estrada nove quilômetros antes do ponto final. Hoje, quarenta e sete anos depois do grande acontecimento, ainda estão vivos os cinco heróis natalenses.
As ruas e praças da Cidade Alta são quase as mesmas de hoje, com algumas modificações para pior. Assim é que a Praça André de Albuquerque era constituída de um lindo jardim, , com árvores, bancos e um lindíssimo coreto como o que existiu na Praça Augusto Severo, na Ribeira. Fizeram nessa praça várias reformas que não deram certo por falta de cuidado. Hoje, é uma praça acabada. O mesmo aconteceu com as Praças Pio X e João Tibúrcio. Apenas. Apenas surgiu uma pracinha nova que é a John Kennedy, no coração do Grande Ponto.
Conforme disse, as ruas e praças são as mesmas de antigamente, variando apenas com as mudanças de nomes tradicionais e já na alma do povo, como foram as das ruas "Estrela", "Dos Tocos", "Vai-quem-quer" e outras.
Mas hoje, como ontem, o Grande Ponto, a Cidade Alta é o coração de Natal. O movimento hoje é enorme. Lojas e estabelecimentos modernos e artisticamente ornamentados. Ótima iluminação. Pelas 17 horas, temos até a impressão de que estamos em uma cidade grande.
Local predileto para o término dos grandes comícios políticos. Local para ações mais rápidas de aprovação ou de rebeldia.
Não é de hoje este ambiente reinante no Grande Ponto. Sempre foi assim. Em 1917, o bonde de Petrópolis descia para a Ribeira e, ao cruzar com a rua Coronel Cascudo (Beco da Liga Artístico-Operária), atropelou e matou uma pobre velha. A rapaziada correu para lá. O capitão Gilbert prendeu o motorneiro Gonçalo Otávio dos Santos. Chegou o galego da Empresa da Tração Força e Luz. Ficou patente que o motorneiro não tinha culpa, pois a mulher era quase surda e muito deficiente da vista. A coisa estava assim quase que resolvida, quando o galego da empresa disse que "além disso, a mulher já estava muito velha e já podia morrer". A rapaziada, então, revoltada e chefiada pelos líderes Arari Brito e Artur Coelho, começou a depredar o bonde. Vidros quebrados, bancos danificados, etc. Mas o veículo era duro e a coisa ia ser demorada. Resolveram, então, incendiá-lo E chega Antônio Coutinho Madruga com uma lata de querosene. O bonde foi lavado de ponta a ponta e o fogo foi o maior. Em pouco tempo, o carro estava reduzido a um monte de ferros retorcidos. Mário Gurgel, também baderneiro e fotógrafo amador, bateu uma bela chapa do bonde rodeado pelos heróis. A polícia fez uma investigação e só encontrou filhos de gente graúda dentre os incendiários. Inquérito abafado. E, ainda hoje, depois de mais de meio século, o motorneiro ainda está bem vivo para contar o incêndio. Fábio Zambrotti foi a pessoa que gritou: "Fogo no bonde!".
Também no Grande Ponto, no dia 5 de outubro de 1930, o Dr. Omar Lopes Cardoso detonou a primeira e última dinamite por ocasião da Revolução. O estampido foi tremendo e diversas casas tiveram suas vidraças partidas. O prejuízo maior foi o verificado no Cais Tavares de Lyra. Um rebocador estava atracado com uma corda segura na balaustrada do Cais. O rebocador ia levar governantes que se retiravam do Estado com a aproximação das forças rebeldes. Quando o estrondo foi ouvido, o rebocador arrancou sem a prévia retirada da corda e levou a metade da balaustrada.
Até a supressão dos bondes, Natal não teve mais do que quatro linhas, que eram: Petrópolis, Tirol, Alecrim e Circular. Houve apenas variação quanto à extensão. Assim é que o carro de Petrópolis que usava farol vermelho, ia até o fim da balaustrada da Avenida Getúlio Vargas, passando depois a ir até Areia Preta, voltando depois ao ponto de origem. O bonde do Tirol, que tinha o farol verde, ia até o antigo Aéro Clube. O do Alecrim, com farol roxo, ia até a praça Gentil Ferreira, e, depois, até Lagoa Seca. O Circular, sem luz específica, rodava somente entre a Cidade Alta e a Ribeira.

¹. Natal que eu vi.
*In Natal que eu vi, Imprensa Universitária. Natal. Outubro, 1971.






O Mito do Grande Ponto
Miranda Sá

Vão 23 anos que aportei em Natal. Antes de chegar, já conhecia o Grande Ponto na sua configuração mítica, com as alegorias e mistérios da Natal dos tempos da guerra contra o nazi-fascismo.
Meu pai (que viveu aqui durante a guerra) contava, com detalhes, as situações fabulosas surgidas na convivência dos potiguares e os gringos, e quase todo o anedotário se passava no Grande Ponto.
Como cheguei atrasado no encontro com a História de Natal, já não encontrei os bares, cinemas, restaurantes e sorveterias da velha geografia, nem o desfile vespertino das moças chiques e o inevitável flerte com os forasteiros.
Também não alcancei o trottoir noturno das meninas de Maria Boa, que já compunha a galeria das pessoas reservadas e não permitia que as suas pupilas saíssem à rua seduzindo prováveis fregueses.
Ocorrera um deslocamento de eixo. A conversa fiada, as discussões políticas, os boatos e as transas comerciais ocorriam na calçada do Café São Luiz; e foi ali que conheci inúmeras pessoas que habitam o meu coração, onde os mortos convivem com os vivos.
Não arrisco citar os amigos que conquistei entre um cafezinho e um cigarro, mas registro na memória algumas observações. Uma delas era a curiosa ocorrência da fauna humana que, de manhã era uma, ao meio-dia outra, no fim da tarde outrem e, à noite, gente totalmente diferente. Até mesmo os chamados tipos populares e os esmoleres tinham horários próprios.
Nos primeiros tempos, a minha presença foi cotidiana e, como os freqüentadores anarquistas do Café São Luiz, não obedecia à ditadura do relógio. Morava ali perto, na Deodoro, o que facilitava as idas e vindas, na ida para o trabalho ou para fazer compras no Supermercado São Cristóvão.
O Café São Luiz era o epicentro das conversas, confidências, compra e venda de contrabando e maledicências. Estiquei a sua calçada até a Ulisses Caldas, indo ao Sebo Vermelho onde folheava livros subversivos e falava mal do governo...
Quase toda noite, degustava a cartola do Jimmy Lanches; e, nos fins de semana, jantava com Marjorie no restaurante do Hotel Ducal, rotina que mantivemos mesmo depois de Manuela nascer, levando-a conosco no “bebê conforto”, para espanto de muitas pessoas.
Mais adiante, ampliei os quadrantes do “meu” Grande Ponto. Estiquei o mapa, indo aperitivar na meladinha do Nazi, incorporando o Beco da Lama na estratégia boemia.
Rebuscando estas lembranças, aqueles anos felizes parecem distantes, mas não. É que a cidade cresceu e mudei-me para Ponta Negra, espaçando minhas visitas à Cidade Alta, embora sem perder o contato com o pessoal do Café São Luiz e do Beco.
Hoje, trafego no País do Ontem cheio de saudades daqueles tempos alegres de samba, suor e cerveja. E lamento a incompetência dos arautos do turismo oficial que nada fazem para preservar o Beco da Lama como um logradouro especial, atraindo de visitantes a curiosos do nosso passado e da nossa cultura.
Tenho certeza que o inesquecível Djalma Maranhão defenderia esta tese, como expressou na sua Evocação de Natal, fazendo folclore com os quadrantes boêmios e populares da Cidade Alta. O grande Djalma, do exílio, rememorava:

“O Grande Ponto dos dias de hoje
Convergência de todos os encontros
e foco de todos os boatos.”






Um ponto que era grande
Leonardo Sodré

A lembrança mais antiga que tenho do meu pai era quando ele vinha do trabalho. Vestia-se quase sempre com ternos de linho branco, que depois do dia de trabalho ficava elegantemente amassado. Ele trabalhava no Grande Ponto, também pouco conhecido por Cidade Alta, naquele tempo.
Era gerente de uma loja de tecidos, "As Nações Unidas", e tinha orgulho de trabalhar no Grande Ponto, atendendo, como ele dizia, a fina flor da cidade. Não tinha carro, e vinha caminhando até a rua Manoel Dantas, em Petrópolis, onde morávamos. Depois, em 1974, colocou seu próprio negócio, o Armarinho Sodré, na rua Coronel Cascudo, em homenagem ao sobrenome de minha mãe, até hoje em funcionamento e administrado por ela. Chamava-se José de Siqueira Leite, apenas Siqueira para os amigos, e faleceu em 1986.
Depois, quando cresci mais um pouco, comecei a conhecer mais o Grande Ponto. Estudava no Colégio Marista e meu pai finalmente havia conseguido comprar um carro. Na verdade, um verdadeiro automóvel, inglês, fabricado em 1948. Não me lembro da marca, mas era preto e parecido com o carro usado pelos "Irmãos Metralha", das revistas da Disney. Ele ia me buscar no colégio e, impreterivelmente, passava na Confeitaria Cisne para uma cervejinha com o dono do estabelecimento e seu compadre e amigo Múcio Miranda.
A Confeitaria Cisne ficava na Rua João Pessoa e tinha um reservado que servia de bar para a maioria dos boêmios daquele tempo. Lá, encontrava outros amigos, Jurandir Pontes, gerente da loja "Quatro e Quatrocentos", Lobrás, que ganhou esse nome depois de uma promoção de vendas; Leão, que consertava máquinas de escrever e calcular e que era exímio jogador de sinuca; Eudo Leite; Professor José Melquíades; o músico e comerciante Gumercindo Saraiva; Mário Lima; Tota Zerôncio; Chiquinho da Mercearia, da rua Coronel Cascudo e; Edson Perez, entre outros.
Vez por outra, descia para a Ribeira e encontrava outro grupo, capitaneado por Luiz Tavares de Souza, José Alexandre Garcia e Luís da Câmara Cascudo.
O garçom era José Américo. Fazia parte do grupo e era tão popular que chegou a se candidatar a vereador. Tinha sempre resposta para tudo, menos para o fato de algumas aranhas conseguirem montar teias tão rápidas nas garrafas consumidas, que eram encostadas nos cantos de parede para feitura da conta nos finais de farra.
Quanto a mim, fazia pequenas incursões no reservado, mas passava a maior parte do tempo sentado na calçada da confeitaria, vendo o movimento e me deliciando com a enorme variedade de chocolates que o meu padrinho vendia para os outros, pois, para mim, ele fornecia de graça.
Depois, fomos morar no próprio Grande Ponto, na rua General Osório. O passeio de domingo, depois da praia, terminava sempre na lanchonete Ky Show, na rua João Pessoa, onde a juventude se reunia num ambiente comercialmente futurista. Tudo era novo, e até a conta se pagava através de boletos individuais, na saída da lanchonete. Os filhos de pais ricos ficavam circulando em modernos Aero-Willys, de um lado para o outro. Ninguém tinha carteira de motorista, e o Jeep do Detran, pilotado por um militar que tinha um bigode imenso, tinha muito trabalho, perseguindo esse pessoal.
À noite, passeávamos pelas calçadas da avenida Rio Branco e João Pessoa, vendo as vitrines. Papai mostrava, todo orgulhoso, a que ele montava. Outras, como as da Casa Duas Américas e Casa Rio, chamavam a atenção da sociedade. Tudo era limpo e ordeiro e não havia assaltos. Tinha até lugar para estacionar onde quiséssemos.
O Grande Ponto tinha grupos. Tinha a turma do Café São Luiz, pessoal diurno. Tinham os especialistas em política, que se reuniam nas madrugadas, na esquina da João Pessoa com a Princesa Isabel. Tinha a turma do Escondidinho, e a turma dos finais de farra da Lanchonete Dia e Noite, palco de memoráveis brigas e acordos políticos.
Tinham personagens incríveis. Alberis, por exemplo, vendedor de jornais, referia-se ao Diário de Natal como Diaris e fabricava suas próprias manchetes. Uma vez, peguei-o gritando: "Extra, Extra! Vejam a notícia da mulher que engoliu um papagaio e arrotou um peru". Tinha o pintor Grilo, responsável por praticamente cem por cento das fachadas de lojas do Grande Ponto, sempre de branco, sempre de bom humor, cantando ou assobiando, com um imenso chapéu. Parecia um mexicano. Tinha Milton Homem de Siqueira, incrível poeta que morava em um barraco na beira da praia, onde hoje é o início da Via Costeira, e sobrevivia vendendo poesias no Grande Ponto.
O Grande Ponto foi palco da maior festa popular que já aconteceu em Natal. A comemoração do tricampeonato de futebol em 1970. Naquele tempo, ninguém descia para a praia. O Grande Ponto era o orgulho dos natalenses e tudo convergia para lá.
Depois, em nome do progresso e conseqüente favorecimento dos shoppings, ruas foram fechadas, fachadas antigas foram derrubadas e muito da história foi se perdendo. Mas o Grande Ponto continua palco de grandes manifestações culturais e políticas e o Café São Luiz, por exemplo, continua a ser um excelente instituto informal de pesquisa sobre qualquer assunto.
O Grande Ponto, que já foi moderno, hoje tem história e melhor do que grande diante do crescimento da cidade, virou um ponto que foi grande fisicamente e se tornou maior ainda pela memória que guarda e preserva.






O espírito de Natal
Casciano Vidal

Na época que conheci o Grande Ponto, não prestava atenção aos tipos humanos únicos que o habitavam.
Era mais um adolescente a passar rápido em suas calçadas de pessoas indo com pressa a lugar nenhum.
Estava mais preocupado em descobrir, mesmo que só com os olhos, e ainda assim respeitando certa distância, as curvas dos seios das mulheres que vinham, e o contorno das nádegas das mulheres que iam.
Coisa de adolescente. Ou de velho tarado.
Naquele tempo, as menininhas usavam calça cocota, de cintura baixa que na frente deixava insinuando o aparecimento dos pêlos pubianos e atrás, a indução ao pecado.
Nesse começo, confesso, não sabia da grandiosidade humana do Grande Ponto.
Mais tarde, assumindo o Grande Ponto e sua genial humanidade, percebi coisas que os olhos curiosos do menino chegado de Mossoró e Alexandria nunca tinham visto.
O Grande Ponto é o lugar mais puro e sentimental da minha cidade Natal.
Recordar o Grande Ponto é o mesmo que mergulhar nos sentimentos dos seus mais interessantes e intrigantes personagens.
E, lá, no mais profundo de cada ser, descobrir, na alma daqueles homens, os mais originais tipos do jeito natalense de ser, de existir e de viver.
São tipos humanos fantásticos e maravilhosos. Prosadores, independentes e anarquistas, os habitantes do Grande Ponto.
Olhando bem, cada um deles traz em si uma estória, um caso real, uma situação triste e melancólica.
Suas histórias nem sempre são motivo de entusiasmo, de alegria ou mesmo de boas lembranças.
Mas, eles não se deixam dobrar pelo infortúnio, passado ou presente.
São exemplos de que é possível erguer a cabeça, transformar-se em grande líder popular, general, ou, simplesmente, em simpáticos cidadãos pacatos, da pacata cidade do Natal.
Por isso, o Grande Ponto é único.
Porque o Grande Ponto tem espírito. E tem espírito vivo.
A alma do Grande Ponto tem inteligência, tem talento. É perspicaz, é astuta e é viva.
Vagueia, ela, pelas suas calçadas, carregando de energias boas e positivas todos àqueles que por lá transitam.
Não é à toa que o Grande Ponto está cada vez mais com o jeitão de ser o coração da cidade. O lugar das decisões sentimentais, onde o humano é mais humano.
Enquanto isso, a razão monetária se muda para um novo centro nervoso da cidade.






A geração das Cocadas
Falves Silva

Amanhã virão os Pássaros negros.
Les chemim du la Liberté
Jean-Paul Sartre

A Década de 60 deixou toda uma geração em estado de alerta. Aqueles acontecimentos marcaram, como ferro em brasa, o comportamento de todos os jovens, que, como eu, estavam ávidos por informações a respeito da vida e do mundo que nos cercava. O chamado conflito de gerações estava nos corações e mentes da juventude em todo o mundo.
Com o fim da era denominada juventude transviada, tão bem exemplificada no filme Nicholas Ray, com esse título, e ouvindo os últimos acordes da Jovem Guarda. Com uma nova indumentária proposta por Mary Quant, a mulher se libertaria de um tabu secular, podendo mostrar suas pernas para o mundo, com o uso da minissaia. A teoria da globalização já estava em moda. Seu idealizador, Marshall McLuham, era o guru da intelectualidade mais rebelde, bem como a filosofia de Hebert Marcuse.
A revolução chinesa, liderada por Mao Tse Tung, era assunto em revistas e jornais de todos os recantos do planeta. O grito de rebeldia dos Beatles e Rolling Stones ecoava em nossos tímpanos como o som de uma metralhadora - RÁ-TÁ-TÁ-TÁ; o Cinema Novo brasileiro incorporaria uma nova estética vinda da França, através do Nouvelle-vague. Mudanças comportamentais sugeriam um novo estilo de vida. As contradições do sistema, por um lado, a repressão policial imposta por ditaduras militares na América Latina, por outro lado, as propostas de liberdade do movimento hippie, e, paralelo a tudo isso, o recente genocídio da guerra do Vietnã, milhões de mortos, em nome do nada.
A teoria da poesia concreta que vinha do Sul via Moacyr Cirne, e posteriormente a radicalidade do Poema Processo. O tropicalismo propondo uma saída longe do conformismo, “sem lenço e sem documento”.
Os assassinatos de Martin Luther King, Che Guevara, John Kennedy e a morte de Marylin Monroe fecharam o círculo de fogo daqueles dias; no Brasil, a guerrilha urbana demonstrava as potencialidades de uma geração inconformada com as pressões do regime militar; enquanto isso, diante de tantos conflitos, estávamos aqui, nas cocadas do Grande Ponto, “dando milhos aos pombos”.
As Cocadas ficavam no local onde hoje é a praça Kennedy. Eram blocos de cimento armado, formando bancos, cuja semelhança com cocadas era evidente, daí esse nome. Era naquele local, onde os expoentes daquela geração resolviam os problemas do mundo. Manoel Onofre Júnior, Jarbas Martins, Inácio Magalhães, Ivanêz e “Alma de Vaqueiro” formavam o grupo dos conservadores. Gilberto Stabille, Alderico Leandro, Roberto II, Paulo Rocha (Palocha), Bené Chaves, Valdeci Lacerda, Francisco Sobreira, que chegara recentemente de Fortaleza, Franklin Capistrano, Moacy Cirne e eu, éramos a turma do Cine Clube Tirol. O pessoal da esquerda revolucionária era composta por Hermano Paiva, Antônio Capistrano, Juliano Siqueira, Alderico Leandro e outros (este último entraria para a guerrilha em seguida). Os novatos, Alderico Leandro e Natanael Virgínio (meu irmão), Marcos Silva, Léscio e Bosco Lopes. Tinha ainda o grupo dos “pra frente”. Pra frente significava cabelos compridos, calça boca de sino e estar atualizado com o que existia de mais moderno naquele momento; Alexis Gurgel, José Ribamar, Fernando Pimenta, João Charlier, Gersino Saraiva e eu, que, eventualmente, transitava simultaneamente em um ou dois grupos. Por último o pessoal da casa do estudante, cujo presidente, Emanuel Bezerra (outro que ingressaria nas fileiras da guerrilha e que posteriormente seria assassinado nos porões da ditadura), Manuel Duarte (Manu), Dagmar Fernandes, Raimundo Hélio, François Silvestre. Além desses, outros também freqüentavam as Cocadas: Carlos Furtado, Toinho Gurgel, Dailor Varela, Gileno Guanabara, Francisquinho Gurgel (o gordo) e Anchieta Fernandes. As questões pertinentes naqueles dias eram a política, música, literaturas e mulheres. Éramos todos solteiros, porém as grandes discussões dos meados dos anos 60 giravam em torno da Sétima Arte.
Há apenas quatro décadas, Natal não possuía os atrativos dos dias de hoje. Não existiam as Universidades, não havia Shopping Centers e os sinais da televisão só apareceriam na década seguinte. Com a criação do Cine Clube Tirol, em 1961, o entretenimento por excelência era aquele que McLuham denominara de “a universidade sem paredes”: o cinema. De qualquer forma, toda aquela rapaziada citada acima estava ligada direta ou indiretamente ao Cine Clube Tirol. Saía aquela romaria em direção às Cocadas do Grande Ponto, para teorizar sobre Cinema, Literatura [Chegara na Livraria Universitária, as últimas traduções de Kafka, Henry Miller, James Joyce, J.D. Sallinger]. Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, e Educação pela Pedra, de João Cabral de Melo Neto, estavam em pauta nas discussões. Desse caldeirão de adversidades, surgiria uma nova mentalidade de artistas, intelectuais e políticos que, em breve, mudaria o rumo das artes e da política no Rio Grande do Norte.
Moacy Cirne migrou para o Rio de Janeiro, “porém sem nunca deixar de referir-se em seus textos às raízes potiguares”. No Rio, milita como professor na UFRJ, crítico, poeta e teórico de vanguarda. Cirne tem em seu currículo cerca de duas dezenas de títulos publicados, entre os quais, A Poesia e o Poema do Rio Grande do Norte. Francisco Sobreira é senhor de uma prosa comparável a qualquer escritor de boa qualidade do Nordeste. Aliás, Sobreira retrata muito bem o clima de divergências entre os membros do Cine Clube Tirol daquele tempo, no seu romance Palavras Manchadas de Sangue, onde os personagens foram todos sócios daquela agremiação. Eles são assassinados, e, aqui, Sobreira deixa transparecer ainda um certo rancor acerca daquelas discussões. Anchieta Fernandes, um dos grandes nomes das letras potiguares, pesquisador, teórico e poeta, autor de vários textos, alguns ainda inéditos, incompreendido e discriminado, é autor do ensaio o Ecran Natalense, onde traça o perfil da história do cinema da cidade, além do excelente Por uma vanguarda nordestina, primeiro texto sobre vanguarda do Rio Grande do Norte. Um grande crítico. Bené Chaves, outro escritor mal compreendido, com uma linguagem definida. Chaves cria seus personagens como marionetes que lembram de perto o clima dos filmes de Antonioni. Com um texto autobiográfico, ele cria uma cidade imaginária, “Gupiara”, onde seus tipos procuram o significado de suas existências. Seu último romance, A mágica ilusão, reflete a grande influência da linguagem cinematográfica em sua obra. Manoel Onofre Jr., contista, historiador, pesquisador, autor de vários livros, ensaios sobre música. Onofre revela-se um dos grandes nomes da literatura potiguar. Ciente do seu ofício de escritor, Onofre versa sua prosa para uma linha regional. Jarbas Martins, poeta bissexto, articulista de mão cheia, colabora com jornais da cidade. Autor de Contra Canto, uma poesia cheia de surpresa. Inácio Magalhães, misto de nômade e sedentário do pessoal das Cocadas, é o mais viajado. Conhece o Brasil de Norte a Sul e, de quebra, ainda alguns países da América Latina e Europa. Homem simples, de formação católica, autor de Memórias de um Vendedor de Cavaco Chinês. O livro fala sobre sua infância em Ceará-Mirim. Um grande intelectual. Alderico Leandro e Natanael Virgínio, o primeiro transitou no jornalismo radiofônico e televisivo durante trinta anos; o segundo, trabalhou na redação da Tribuna do Norte como repórter policial durante mais de vinte anos. Virgínio escreveu bons artigos e contos no início de sua carreira. No entanto, desencantou-se com as letras e não teve como desenvolver seu talento como escritor. Marcos Silva, outro que escolheu o Sul como opção. Catedrático na USP, escritor, pintor, poeta e articulista, colabora em jornais e revistas de todo Brasil, entre eles, O GALO. Autor de vários livros, é professor da cadeira de História Contemporânea. Valdeci Lacerda e Ribamar Gurgel não tiveram tempo de expressar o talento promissor que ambos demonstravam ter: subiram para o primeiro andar antes do tempo, vítimas de desastres automobilísticos. Franklin Capistrano e Juliano Siqueira enveredaram para política partidária. Capistrano, psiquiatra, poeta, articulista e vereador pelo PSB, autor de Catagramas, Poemas da Flor da Pele e Poemagens, sua poesia é seca e cortante como uma lâmina, onde transita no campo da metalinguagem. Siqueira, poeta, articulista e brilhante orador, possui o talento nato dos grandes políticos, o último grande marxista. Gersino Saraiva também entrou para a guerrilha. Com sua prisão, tempos depois, Saraiva se retrataria, causando um certo desconforto ao pessoal da esquerda. Bosco Lopes e Alexis Gurgel levaram até às últimas conseqüências o uso das drogas, vítimas de uma sociedade mal estruturada. Gurgel, jornalista talentoso e polêmico, ardoroso defensor de uma vanguarda potiguar, seu livro, Cultura de Massa em Processo, comprova sua inquietação. Bosco Lopes, poeta e boêmio, autor de dois livros, Corpo de Pedra e Projeto Zero, este último dentro das propostas do Poema Processo. João Charlier e Fernando Pimenta, irmãos de Anchieta Fernandes, também poetas. Charlier colabora em jornais onde publica seus poemas. Pimenta, poeta, como Jarbas Martins, é também bissexto. Ganhou alguns prêmios de poesia nos anos 70, e tem um livro no prelo. Hermano Paiva, Antônio Capistrano, Raimundo Hélio e Manu, os três primeiros foram deputados estaduais. Capistrano continua na política. É vice prefeito em Mossoró. Quanto a Manu, sempre militou na política nos bastidores da esquerda. François Silvestre, romancista e articulista com vários livros publicados, colabora em jornais da cidade. É o autor de A pátria não é de ninguém. Dagmar Fernandes trilhou o caminho da burocracia. Dailor Varela, outro que partiu para São Paulo, jornalista e poeta, autor de vários livros de poesia, é um dos expoentes do Poema Processo. Carlos Furtado, teatrólogo, dirigiu uma dezena de peças, algumas premiadas em vários estados do Brasil. Um diretor de talento insofismável. Gileno Guanabara, outro que também entrou nos bastidores da política do Rio Grande do Norte.
Todos esses nomes aqui relacionados, fizeram, nas Cocadas, seu aprendizado. Hoje, passados todos esses anos, somente Palocha e eu continuamos freqüentando o Grande Ponto como guardiões do centro da cidade. Continuamos sempre em estado de alerta, numa esquina ou noutra.

Escola de Sagres
Vicente Serejo

O Grande Ponto do meu tempo era para nós, os mais jovens, uma espécie de Escola de Sagres. Dali, ouvindo lições de marear, partíamos para o mar-oceano, e uns chegavam a dobrar o Borjador. Assim foi comigo e com toda minha geração. Uma escola de paixões. Uns eram apaixonados por cinema; outros, por artes plásticas, e outros mais por literatura. Além dos mais lidos e bem informados que entendiam de tudo, pois naquela pequena praça cabia o mundo que a nossa imaginação construía. Sem soberba e sem ambição.
De uma feita fizeram uma reforma na Praça Kennedy. O busto, sobre uma pequena parede, ficou mais para os lados do Nordeste, com aquela frase em letras de bronze, e nos canteiros que eram rentes ao chão ergueram umas jardineiras. Espécie de jardins suspensos do Potengi. Daí o apelido de Cocadas que nasceu para identificar aqueles volumes sobre os quais nós nos sentávamos. Do nosso Promontório olhávamos o oceano e sonhávamos com atlânticas viagens que só muitos anos depois conseguimos realizar.
Aliás, ali também tínhamos aquilo que nem mesmo nós sabíamos, porque o modismo da expressão só viria muito tempo depois: o pluralismo democrático. A liberdade de pensamento e de expressão das nossas opiniões, com alguns pontos de convergência centrados nos mais experientes nas leituras e descobertas do mundo. Como Inácio Magalhães de Sena e Manoel Onofre Jr., que um dia se fez juiz, chegou a desembargador anos depois, mas sempre fiel aos velhos amigos do Grande Ponto, como até hoje.
Eram estudantes de medicina, direito, engenharia, profissionais disso ou daquilo, quase todos de famílias simples e a espera de um bom destino. Naqueles anos sessenta, a vanguarda natalense esperneava em festivais e happenings – isso que hoje chamam de performances – sonhando mudar o mundo. Marcos Silva espantava a cidade cantando no Palácio dos Esportes com um despertador no pescoço; Mirabeau com o carrocel de cavalinhos; Dailor fazendo poema-processo, e Falves, o maldito, expondo no Francesinha. Duas mulheres abalavam nossas fantasias eróticas: Gisele, a espiã nua que abalou Paris, em historias de livros de bolso; e Justine, do Marquês de Sade, que circulava numa misteriosa edição portuguesa, de capas vermelhas, que um dia caiu na nossa curiosidade pelas mãos de Neguinho. Um tipo magro, cobrador de uma famosa clínica de odontologia, sempre numa bicicleta preta, de farol e buzina, pregando a revolução socialista sussurrada com certo charme, até que um dia desapareceu envolvido numa nuvem suspeitíssima.
O Grande Ponto do meu tempo tinha Manida, o louco genial que pregava a força acima de todas as coisas. Nestor, do Magazin Jóia, uma pequena perfumaria ali na esquina da Rio Branco com a João Pessoa, a descrever ao vivo as maiores e mais apaixonantes conquistas amorosas. Medeiros, um sertanejo do Seridó com alma de vaqueiro que falava com um ritmo como se aboiasse. Os irmãos Diógenes e Demócrito, o galego Zelande, e Hélio Brucutu, baixo e forte, contando histórias nas quais era sempre o grande vencedor.
O Bar Cisne resistia, pagando o silêncio da decadência com garrafas de uísque na pequena vitrine. E onde hoje não é mais nem o luxuoso Hotel Ducal, com seu mural feito das areias coloridas de Tibau, havia uma sorveteria que fazia cartolas. De longe, da João Pessoa, vinham os gritos de Arthuzinho conversando no Dia-e-Noite sobre os gols do América. Gasolina era garçom, o Oásis ainda respirava e na Rádio Nordeste entravam e saíam figuras importantes da política, além da valentia de Eugênio Neto contra Erivan França.
O Grande Ponto do meu tempo fugia, certas noites, para as margens escuras do Potengi. Lá estava, meio ancorado como um barco velho, o tombadilho do Brisa Del Mare. Cerveja, rum com coca-cola e caranguejos flamejantes que nós batíamos até altas horas e onde uma vez quebrei um dente e fiquei com vergonha de encontrar com Rejane. A cidade era calma. Voltávamos caminhando e cantando, como naquela canção. De vez em quando, passava um caminhante noturno enchendo as ruas, assobiando mágoas de amor.





Grande Ponto, 22 de novembro de 1963
Talvani Guedes da Fonseca

Naquele dia, eu tinha que sair mais cedo do trabalho, porque, à noite, o prefeito Djalma Maranhão inauguraria, na praça ao lado do Natal Clube, a I Feira Natalense de Livros. Antes de deixar o prédio do SECERN, na esquina da rua Trairi com a avenida Campos Sales, resolvi dar uma passadinha, como sempre fazia, no gabinete de Calazans Fernandes, o secretário de educação mais arrojado e inovador que o Rio Grande do Norte jamais viu.
Encontrei-o arrasado, os cotovelos enfiados na mesa, as mãos segurando um rosto desanimado, como nunca vira. À sua frente, meia dúzia de fotos em que ele aparecia ao lado do presidente John Kennedy, na Casa Branca. Fotos recentes, de um mês atrás, tiradas na viagem que ele, como secretário, fizera aos Estados Unidos para garantir mais alguns trocados para a aplicação do método de alfabetização do professor Paulo Freire.
Sob a liderança de Marcos de Brito Guerra, já havíamos testado a metodologia em Angicos, Mossoró, Macau e Caicó.
Iríamos invadir Natal, e a mim cabia parte do Bairro das Quintas. Sabíamos que o golpe militar se aproximava a galope, e eu me preocupava em deixar Natal o mais rapidamente possível. Calazans, mais do que ninguém, ajudava-me nesse intento, porque, duas semanas antes, num congresso estudantil realizado no Ginásio Silvio Pedroza, nos fundos do Atheneu, eu lera um suposto telegrama de Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, denunciando que “a égua fugitiva dos Pampas estava em Natal”. Por égua, leia-se General Carlos de Andrade Muricy, comandante da Guarnição do Exército, residindo a poucas dezenas de metros do Ginásio, perto da praça Pedro Velho, de onde ouvira, numa noite clara e calma da Natal daqueles tempos, o som do alto-falante, levado pelo vento.
Minha situação era precaríssima.
Calazans olhava as fotos, só faltava chorar:
- Mataram-no hoje, em Dallas, Texas.
- Mataram quem, homem?
- Kennedy...
Não havia, na época, o ditado, porém eu disse para mim mesmo: quem procura, acha. Um ano antes, nós, da Juventude Comunista, pintáramos todos os muros da avenida Deodoro com a frase “Go home, Yankee!”, contra o Kennedy que autorizara a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba. Jamais gostei dos Estados Unidos, o país onde mais se mata presidentes.
Deixei Calazans, passei em casa, e fui para o Grande Ponto. Quase ninguém nas ruas: uma desolação de impressionar até mesmo às comerciárias, que acorriam aos pontos de ônibus em frente ao Cinema Rex, na avenida Rio Branco. Vi um sinal de vida, um Jeep, modelo 1954, estacionado. O Jeep do prefeito. As luzes da praça estavam começando a acender-se. Aproximei-me, Djalma conversava com Paulo de Tarso, irmão de Bartolomeu, e Moacyr de Góes.
A Feira sequer começara, nem começaria. Paulo de Tarso folheava um exemplar de “Os desgarrados”, de William Faulkner, talvez o único livro vendido naquela feira que não houve. Djalma, mais o estadista que o prefeito, decidira: não haverá feira hoje.
O Grande Ponto, deserto, testemunhou sua grandeza. Despedi-me do prefeito e fui ao Rio Grande, ver um filme, mas, antes de sair, escutei:
- Vou dar um nome a esta praça: John Kennedy.
O golpe andou a galope, como se previa. Cheguei ao Rio de Janeiro no dia 9 de março de 1964. Escapei, por milagre de Santa Íris de Calazans Fernandes, que me deu passagem; e de seu marido, Francisco, que me deu abrigo.
Quatro meses depois, recebi uma missão - dentre as várias que tive - do Partido Comunista Brasileiro, meu único e eterno partido: a de dar assistência a um novo exilado que chegara do Nordeste e buscara abrigo na Embaixada do Uruguai. Seu nome: Djalma Maranhão.
Foi lindo. Levei uma dúzia de mariolas, um doce de banana enrolado em tabletes de papel celofane, típico do Rio, e exemplares de jornais de Natal, dos últimos dias, conseguidos no Jornal do Brasil, meu primeiro emprego de repórter no Rio, conseguido no dia em que completei 18 anos.
Não voltei a ver meu querido e amado prefeito, meu pé no chão. Um dia, chefe de reportagem da Veja, recebi, de Montevidéu, uma carta do meu ídolo, Djalma. Sugeria que eu pedisse aos patrões da editora para a qual eu trabalhava, que lhe concedesse uma migalha: a representação comercial, no Uruguai, de suas revistas. Mas os patrões, americanos naturalizados brasileiros, disseram não.
E de nada adiantou eu tentar dizer-lhes que o remetente comunista da carta uruguaia dera à praça o nome do presidente assassinado de sua pátria, salve! Salve!
Djalma não teve tempo de construir a praça, mas deu, à Estação Rodoviária da Ribeira, o nome do presidente americano assassinado naquele dia.

Mistérios do Grande Ponto

O primeiro mistério: a que horas abria a Cisne, bar e confeitaria com mesas de pés de madeira trabalhada, tampos de mármore, cadeiras de ferro e freguesia ilustre, disputada, palmo a palmo, por Rossini Maia e seu concorrente tradicional, o português Olívio, da ribeirinha Delícia? E quem fechava por último, o Dia-e-Noite, na João Pessoa, depois do Grande Ponto, ou o Café São Luiz, na Princesa Isabel? Por incrível que pareça, havia um pedaço do Grande Ponto que não dormia, ainda que fosse a Farmácia Santa Lígia ou o Comitê Permanente em Defesa da Petrobrás, aberto por Djalma Maranhão, na esquina de cima da João Pessoa com a Rio Branco, no primeiro andar de um prédio antigo de parede e meia com a Confeitaria Vesúvio, do Maiorana, que, desanimado com as estrofes que proclamam...

“em cada rua um poeta
em cada esquina um jornal...”

saiu de Natal para abrir, em Belém, o “Liberal”.
Em cada esquina do Grande Ponto um grupo se entrincheirava em defesa do direito de jogar conversa fora, depois do jantar. Na esquina de baixo, com a Princesa Isabel, Adalberto de Souza, Áureo Borges e outros inimigos do álcool, comentavam futebol, política e, evidentemente, a vida alheia. Pecado, Esdras, Demétrio, Machadinho e a turma da Casa do Estudante, já naquela época, aprendiam a ficar em cima do muro, divertindo-se com a ousadia do marketing da maior persistência eleitoral da história de Natal, um candidato que subia num caixote e falava ao nada:

Tin-tin-tin, tá-tá-tá
Oscar Lins vai ganhar

Até Aderbal, irmão de D. Costa, aparecia por lá onde se falava mal da santa madre, de D. Eugênio a Padre Eymard, considerando-se que, no Grande Ponto, a única instituição respeitada era a Augusta Ordem, oriunda dos esforços de Bartolomeu Fagundes.
São tantos os mistérios do Grande Ponto que, para enumerá-los, nem mesmo com mil crônicas.





A velha Confeitaria Cisne
Protásio Melo

Ficava quase no final da rua João Pessoa, 162, junto ao prédio da loja Nações Unidas, esquina com a Rio Branco. Aquele local era ponto de destaque da cidade. Na década de 30, foi o Café Avenida onde a rapaziada elegante se reunia de paletó e gravata e, algumas vezes, até de bengala, para tomar café. Os jovens bebiam menos nesse tempo. Iam, ali, mais para passar o tempo, contar suas conquistas ou ‘‘bodagens’’ e, como não podia deixar de ser num grupamento humano civilizado, ‘‘sentar a pua’’ em quem prevaricava. A cidade era pequena. Sabia-se de tudo e se conhecia todo mundo.
Depois veio a Grande Ponte, de Andrade, que também exerceu papel importante na vida da Natal em desenvolvimento. O Grande Ponto viu alegria, cachaçada, brigas de Milton Siqueira, perseguição política, esculhambação de estudantes, prisões, enfim, um aglomerado à altura de uma cidade que se modernizava.
Vestia-se camisa esporte, ‘‘silek’’, que os americanos introduziram nos costumes. Os assuntos eram outros, já se viajava para fora de Natal para conhecer um Brasil maior, os filhinhos de papai - os mauricinhos - arrumados à última moda e dirigindo carros modernos, para olhar o ‘‘footing’’ de tarde, descendo a João Pessoa ou subindo a Rio Branco, que alguns ainda chamavam de rua Nova.
E se passaram os tempos, as condições de vida acabaram com o velho Grande Ponto, e a Loja Nações Unidas abre elegante estabelecimento na esquina. Mas ficara a grande falha. Não havia mais um lugar para sentar, conversar, beber ou comentar a vida alheia. É quando aparecem os irmãos Rossini, Múcio e Aldemar Miranda, inaugurando a Confeitaria Cisne, no nº 162, local bonito, elegante e moderno, onde era explorado o ramo de Confeitaria na parte da frente, e, ao fundo, imenso serviço de bar, onde imperava o famoso garçom Zé Américo, homem que sabia tudo.
A Cisne teve vida longa, funcionando por quase 25 anos, servindo à cidade e seu povo exigente, numa Natal adulta, aos americanos que chegavam.
Os irmãos Miranda eram simpáticos, atenciosos e amáveis, porém Rossini, por ser o mais extrovertido, era a figura principal. Delicado, simpático, paciente, de grande amabilidade e cara bonita, até quando ‘‘penduravam’’ uma despesa. Nunca o vi de cara feia, facilitando em tudo a vida da freguesia. Havia de tudo na Cisne, e bebia-se de tudo. Os ricos pediam whisky estrangeiro e a população média tomava rum, conhaque, cachaça. Mas a preferência era pela cerveja. Existiam os cervejeiros especiais também. Vi Xico Lamas, certa vez, apostar e ganhar, adivinhando três copos, com cerveja de três marcas diferentes: casco verde, casco marrom e casco preto.

Bozó

Havia os fregueses solitários, como o comerciante Omar Furtado, que vinha todo dia, às 10h da manhã, tomava duas cervejas e ia embora. Pela manhã, entre os jogadores de bozó de cinco dados, era uma alegria presenciar uma partida do professor William Aires, o célebre professor de matemática do Atheneu. Literatos, médicos, advogados e militares graduados também freqüentavam a Cisne. De manhã, podia se encontrar ali Cascudo, Amaro Mesquita, General Leitão, Zé Aguinaldo, Pelusio Melo, Veríssimo Melo, João Medeiros Filho, sempre contando suas aventuras, João Machado Gordo, José Melquíades, membros da Federação de Futebol e outras entidades esportivas.
E a turma mais jovem, aprendendo o caminho, também passou a freqüentar a Cisne. Era um movimento muito grande pela manhã, de tarde e de noite. Havia fregueses para todas as horas, assim como os ‘‘especiais’’. O Rei Momo, Wilson Maux, grande cervejeiro, Luizinho Doublecheck, Clóvis Guerreiro e muitos outros dos bares vizinhos, como a Baiúca e o Pk Bar, de Rui Praieiro, que vinham mudar de ambiente.
Certo dia, entrei no bar e, sozinho numa mesa, estava um rapaz moreno e simpático tomando uma cerveja. Olhou para mim e, de dedo em riste, perguntou: ‘‘Você é que é Protásio Melo? Respondi que sim, e ele continuou: ‘‘Você escreveu um poema na Revista ‘‘Bando’’: Perdi no meu sonho a estrela da tarde, não foi? Respondi que sim, e ele disse: ‘‘Diga a Manoel Rodrigues que mude o nome de ‘‘Bando’’, que sugere cangaceiro, morte, sangue. Um poema bonito e lírico como o seu não devia estar ali’’. Então, perguntei: ‘‘quem é você’’? Disse: José Gonçalves de Medeiros.
Estava diante do poeta mais badalado do Rio Grande do Norte a elogiar um poema de minha autoria. Na Cisne, se tramavam coisas e até golpes políticos. Os estudantes do Atheneu também iam ao bar. Mas como dinheiro de estudante é minguado, demoravam pouco tempo. Vi muito por lá o estudante apelidado de ‘‘Pecado’’, Danilo Bessa, Berilo Wanderley, Pompeu, Claudionor Filho. Militares graduados de várias estrelas tomando discretamente whisky.
E corre o tempo, a Cisne prospera, aumenta a freguesia e começa a fazer parte da fisionomia de Natal. Do lado de fora, formavam-se rodinhas: médicos, advogados, jogadores de futebol, desportistas, bicheiros, vagabundos de toda espécie, pedintes.
A Cisne dos Miranda tornou-se um marco na cidade de Natal.




João Machado
Augusto Severo Neto

Calças folgadonas. Camisa, geralmente branca, também folgadona. Por fora das calças e chegando quase até os joelhos, para esconder uma hidrocele que ele teimava em não operar, mas que terminou operando, “no frigir dos ovos”. Aí, a camisa encurtou, mas não tanto. O hábito e até a saudade, sim, porque a gente acaba sentindo saudades de tudo.
Gordo, calvo, cabeça ovóide. Voz profunda de barítono russo cantando. “Olhos negros”. Doidinho por futebol. Foi presidente quase perpétuo da Federação Norte-rio-grandense de Desportos. Presidente perpétuo do Conselho Deliberativo do Sport Club de Natal, lá na rua Chile, dando para o Potengi, com suas ioles e suas regatas.
Jornalista e locutor esportivo dos bons. Chegado, até demais, a uma cervejinha gelada, que sabia beber, quando resolvia, de um jeito só dele: colava a boca no gargalo e secava a garrafa de um fôlego, feito lobo matando a sede.
De família tradicional rica, João Machado viveu na Inglaterra e fez parte de seus estudos em Oxford. Isso não afetou em nada a sua nordestinidade.
Desligadão. Uma vez possuiu um carro Henry Junior, que a gente chamava de frango assado e que ele se limitava a botar gasolina. Nada mais. Óleo que é bom, nunca. Lavagem? “Para que, se vai sujar de novo?”. Calibragem de pneus? “Quando eu comprei ele já estava calibrado”. Um dia, o frango assado deu um prego mais sério e João o deixou na rua. O Detran recolheu e mandou avisar a João, para ir buscá-lo. João disse que não ia, que não queria mais o carro, que ele não prestava mais. E não foi.
Querido dos companheiros de redação e de federação, mesmo daqueles com os quais, ele, por bronca ou gozação, tomava assinatura. Querido de Natal inteira que adorava ouvir seus programas, suas tiradas, suas irreverências. Tudo sempre inteligente e de humor.
Um dia o coração de João Machado fez sujeira com ele. João foi levado, às pressas, para a UTI. Natal ficou tensa e triste, acompanhando a doença de João. Depois ele morreu. Natal ficou mais pobre.

In de Líricos e de Loucos, Augusto Severo Neto.
Editora Clima, Natal - 1980





Geografia sentimental do Grande Ponto
José Maria Guilherme

Apesar de tudo, fui feliz na minha juventude. Tive amigos que, como eu, sonhavam com um mundo melhor transbordando de paz, cheio de crianças nas escolas; barriguinhas cheias; saúde de ferro; correndo atrás das pipas, das bolas nas peladas; roubando as mangas, doces de “ripunar”, do sítio do “Dr. Choque”; pegando “morcego” nos bondes (o bonde nove era o pior, tinha o estribo muito alto); fazendo “pendura” na Sorveteria Cruzeiro. Celso, um dos garçons, era o único a entender nossa gula, nossa pobreza, e aceitava nossos “fiados”. Se morreu, deve estar distribuindo sorvetes aos querubins.
Sorveteria Glacial, de Aparício Menezes, esquina das ruas João Pessoa (antiga Visconde de Inhomerim, outrora Cel. Pedro Soares, primeiro proprietário do palacete construído na esquina da avenida Deodoro com a citada João Pessoa, onde hoje vemos o Edifício Cidade do Natal), e Princesa Isabel, antiga 13 de Maio, e antes Rua dos Tocos, onde, toda Quarta-feira, estudante gozava de um abatimento de 50% em cada taça de sorvete.
Atrás da Glacial, Jaecy, o fotógrafo poeta, instalara seu primeiro studio, onde eu ia escutar músicas da melhor qualidade e admirar as fotos-paisagens de Natal, todos os dias após as aulas do 7 de Setembro. Os filmes seriados e; os de Tarzan; Mandrake, o Mágico; Flash Gordon; Os Irmãos Corsos; Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, este , “religiosamente”, na Semana Santa. Tinha gente que começava a chorar já na bilheteria. Gunga Din; os famosos cowboys; Jim das Selvas; A Marca do Zorro; O Príncipe Submarino.
O Cine Rex abrigava casais de namorados que, terminado o filme, nem sabiam seu nome – os beijos não deixavam. Dorothy Lamour, vestida de havaiana, cantando à beira de um lago: “luar e sombras, você junto a mim...” E eu suspirava na platéia. Era minha namorada, sabiam? Muitas vezes, levei-a ao banheiro da minha casa...
Eu marcava o encontro com a namorada já dentro do cinema, ao pé daquelas duas escadas que levavam ao plano superior, o “balcão”. Primeiro, porque o dinheiro mal dava para pagar a minha “entrada”; segundo, porque, ali, o escurinho era mais escuro e servia de manto sob o qual nos isolávamos do mundo e dos olhares curiosos. Quando o filme “quebrava” e a luz acendia, flagravam-se muitos pombinhos em pleno vôo.
Cinema Rex, do velho Xixico, ainda hoje o espaço físico que ocupaste na geografia da cidade-menina está vivo como nunca, em forma de santuário, dentro de todos nós que te procuramos um dia para a cumplicidade dos nossos momentos de amor sem malícias, que esbarravam nos beijos.
Dizem as más línguas que um mossoroense afoito construiu o Cine PAX, pois Mossoró não podia perder para Natal nem nos Cinemas, e logo descobriram que PAX não era o que à primeira vista parecia significar, e, sim, a sigla de Para Abafar Xixico. Era a velha e fraternal rivalidade entre as duas cidades, irmãs desunidas, que se fazia presente mais uma vez.
À noite, após as aulas e os namoros, os encontros no Grande Ponto. Confeitaria Cisne, Casa Vesúvio, de Maiorana, O Botijinha, depois Bar Dia-e-Noite (em cima funcionava a sede do Santa Cruz Futebol Clube, de Zé Guerra, de Zé Lins, pior do que o pior jogador de futebol do Íbis, de Pernambuco, mas de uma abnegação ao clube tão grande que o tornava um gigante no gramado do Juvenal Lamartine, defendendo as cores do seu time). Do outro lado, Raimundo botava seu moinho para rodar e vender caldo de cana com pastel, pão doce, soda ou brote. Tudo a gosto do freguês. Todos tinham medo do caldo de cana “picado” ou azedo, pois fazia rebrotar antigas gonorréias, tratadas com sulfa, comprimidos de Cibazol e dedadas de Dr. Pedro II, em cima do OK Bar, em frente ao Rex.
Sorveteria Cruzeiro, de Antônio China, com a radiola de fichas, onde eu me debruçava, suspirando saudades do primeiro amor, escutando Elizete Cardoso cantar “saudade, torrente de paixão, emoção diferente...” Depois, o Café São Luiz“100% puro” tomou o lugar da sorveteria. O Botijinha, de Jardelino; Café Maia, de Rossini Maia, goleiro dos bons, que defendia o América de gorro na cabeça; A Capital, depois Lojas Seta; Foto Grevy: Cigarreira do Valdir, onde se comprava cigarro americano contrabandeado, a começar do Chefe de Polícia da época, que só fumava “Chesterfield”; Confeitaria Helvética; Salão Santo Antônio, de Toinho barbeiro, onde seu Manduca, meu barbeiro, afiava a sua “Solinger” numa tira de couro e oferecendo, após a barba, “tarco” ou “água verva”. Ourivesaria Lopes e a confeitaria das duas “caritós”. Em frente, ficava o ponto final ou inicial do bonde de Petrópolis, que voltava da curva, na avenida Getúlio Vargas, esquina com a atual Dionísio Filgueira, onde havia o sobrado do Coronel Guerreiro; Farmácia Almeida, de Edmilson, irmão do “Dr.” Alcides, enfermeiro nota dez, depois vendida a Israel Brasil, quando mudou de nome para Farmácia Grande Ponto, onde Raimundo, diplomado em injeções, atendia, duas a três vezes por semana, a turma das “gloriosas” ou “bronhas”, como queiram, que tinha medo da tuberculose que o excesso poderia provocar (como diziam os mais velhos).
Turma boa aquela, que não podia ver uma foto mais arrojada de mulher bonita. Botava a revista em baixo do braço, e a carreira para o banheiro mais próximo era fatal. Depois, o suor, o cansaço, o medo da tuberculose. O último ato era sempre na Farmácia Grande Ponto, nas seringas de Raimundo, onde ele garantia as próximas, com vitamina C e cálcio Sandoz na veia. O time vasto das “gloriosas” fazia fila. Ah! Ademar Maroca, Agenor, Macaquito, Jurinha, Jair Navarro, Tião Medeiros, João Maria, Miguel Purrunca, Aldo Viana, Ivanildo “Deus”. É bom lembrar que esse apelido se deu porque Ivanildo foi testemunha ocular de dois fatos importantes acontecidos no mesmo dia, na mesma hora, em dois extremos da cidade: um nas Quintas, o outro nas Rocas. Sandó, Pedro e Paulo Dieb, Desenho, Pingüim, Carlinhos Lira, Zé e João Gurgel, Zé Correia, Ademar “Rato Branco”, João Pavão, Zé Guerreiro, que numa briga enfrentou três marinheiros com uma banda de tijolo em cada mão, e botou-os para correr com os rostos deformados, e tantos outros bons de mão.
Como eram líricas as tardes do Grande Ponto, com as piadas de “Deus”, de Aldo Viana, a elegância de Lucilo Reis, solteirão magro e feio, com seu metro e meio de altura e o diploma de “inventor de rapaz solteiro”, tomado de Jair Navarro, num concurso tumultuado. Era esse universo, verdadeiro caleidoscópio poético, que compunha o Grande, que um dia foi meu. O Grande Ponto era tão importante que tinha lugar de destaque no mapa do Brasil. É.
Até as ruas e praças que protegiam o Grande Ponto tinham nomes líricos: Praça da Alegria, hoje Padre João Maria; Praça das Laranjeiras; Rua do Fogo, hoje Padre Pinto: Rua Nova, hoje Av. Rio Branco; Rua da Palha, hoje Vigário Bartolomeu. Mais parecia o Vaticano, com o devido respeito. Por pouco, o Grande Ponto não virou Praça São Pedro. Para isto, resistiu heroicamente. Rua da Estrela; travessa do Tesouro, que ligava a rua da Conceição à rua Nova. E, plagiando Bandeira, como eram lindos os nomes das ruas da minha infância...
Grande Ponto dos protestos de Maria Boa, que, aos domingos, cinco horas da tarde, hora em que a nata da sociedade natalense se concentrava ali, passava devagarinho, acintosamente, no seu “conversível”, com motorista e tudo, abarrotado das prostitutas respeitáveis e mais bonitas da cidade, a maioria importada, cuja porta-estandarte era Eurídice, gaúchona pra 50 talheres. Os olhares curiosos das mocinhas, a indignação das damas do “soçaite”, os acenos discretos dos respeitáveis “senhores maridos fiéis”; da estudantada, para quem sempre sobrava um “pão com manteiga”, faziam a felicidade da boa Maria de Oliveira Barros.
Contam que um certo e respeitável senhor da sociedade, muito conhecido por seu espírito gozador, fora avisado por Maria de que havia comida nova na mesa. Expediente usado para clientes especiais, sempre que chegava algum produto importado no mercado. Marcaram o encontro, mas o cidadão chegou atrasado. Por coincidência e para maior infelicidade sua, seu filho, também boêmio, moço, bonito, cheio da grana, e de gosto refinado, chegou por lá, conheceu a menina e convidou-a para um “programa”. Pouco tempo depois, chegou o tal senhor se esbaforindo e faminto de Eurídice, tentando explicar o atraso, e Severino, irmão de Maria, que servia a todos como garçom, disse à pobre vítima: “Doutor, seu filho esteve aqui e saiu com Eurídice”. As mangueiras do sítio de Maria tremeram e suas mangas e o mundo inteiro desabaram sobre o respeitável cidadão, que, amargando a frustração, mas sem perder a pose, estufou o peito e disse: “Severino, quando aquele sacana sair do quarto, diga-lhe que estive aqui, mas fui embora, pois vou comer a mãe dele!”
Grande Ponto dos “coronéis” da política, que enfeitavam as noites daquele verdadeiro campus universitário, com seus ternos de linho branco irlandês 120, de borracha pele de tubarão e sapatos Fox ou DNB de duas cores. Os chapéus mais pareciam sombreros mexicanos, cheirando a verbas da “indústria da seca”, tudo dinheiro do povão. Nas convenções da UDN ou PSD, eles lotavam o nosso espaço. Em compensação, eram pratos cheios para nossas gozações. Certa feita, fiz um pacote, cujo conteúdo era uma pedra de uns cinco quilos, caprichosa e artisticamente embrulhada como presente, e pedi a um dos poderosos chefões para, “por obséquio”, segurar enquanto eu ia ao banheiro, na rua Princesa Isabel, onde ficávamos gozando a generosidade do matuto, coitado, que, com o passar do tempo, não suportando segurar tanto peso, colocava o pacote no chão e ficava de vigia, a olhar para os lados, à procura do dono.
Outra forma de gozar os ilustres convencionais era queimar um pedaço de pano na esquina oposta, esperar que o vento levasse até eles o cheiro do pano queimado e ficar a rir com cada um procurando se algo estava queimando em sua roupa. Havia também o chamado “peido alemão”, produto químico para agricultura, hoje proibido, cujo vidro era aberto em lugar do pano. Depois era só ver os matutos e quem mais estivesse por ali, esvaziarem, em segundos, o Grande Ponto, pois o odor era tão insuportável que matava a praga das lavouras. Numa sessão de filme educativo sobre sexo, exibido depois das dez horas da noite no Cine Rex, em determinados dias, abriram (só abriram) um vidrinho daqueles. Não ficou ninguém, nem os artistas do filme. Naquele dia, o autor, se apanhado, seria linchado. Hoje, confesso, eu fui o autor.
Nos dias atuais, a brincadeira é queimar os pobres mendigos, os inocentes índios, numa prova de evolução e machismo, que eu prefiro chamar de involução e verdadeira selvajaria, fruto da mentalidade que o golpe de 64 e os políticos atuais, corruptos e safados (com raríssimas exceções), estão nos impondo cruelmente.
Falar nisso, lembrei dos veados e outros animais honestos que formavam a ecologia daquela Pasárgada, que tinha seu próprio rei, diferente do de Bandeira. Era o nosso Luizinho Doblechen, o maior Rei Momo do mundo, que, no seu último reinado, entrou no Aéro Clube completamente embriagado, e todo “obrado” em conseqüência de cinco comprimidos de Purgoleite, que coloquei na sua bebida. Djalma Maranhão, presidente da Federação Carnavalesca, “vermelho” de raiva diante de tamanho vexame, derrubou seu reinado que foi ocupado por Severino Galvão. Naquela selva, podia-se ver desde pingüim a elefante; de rato branco e de papagaio rolé aos veados mais famosos das passarelas. Quem esqueceu Pinóquio, empregado do “coronel” Felinto Manso, e líder da bicharada? Detefon, Madame Sônia, a Cartomante, e “seu” Martins, modista e costureiro, professor de Clodovil?
E o mudo que era fresco (não confundir com o outro que cuidava do trânsito)? E eu ficava a imaginar como seria o orgasmo de um mudo fresco...
Por dez centavos dados por nós, Detefon, sacana todo, ia perguntar ao enfermeiro Cícero (que tinha mais raiva de viado do que era possível) se ele podia lhe aplicar uma “chibatosam nas nádegas”. E Cícero, à beira de um enfarte, gritava: “Não, viado filho da puta! E não é Chibatosan, é Phimatosam!” Ao que Detefon dizia: “Eu sei, Cicinho. É só frescura”. E tome perna, porque se Cícero o pega, estava praticado o primeiro viadicídio no nosso Grande Ponto.
Chegavam a Natal os primeiros sargentos da Aeronáutica, e, depois, mais e mais. Eram jovens cariocas recém saídos da escola de Sargentos da Aeronáutica, que vinham estagiar em Natal, e tomar nossas meninas, pois muitas provincianas se encantaram com a chiadeira da voz dos galãs, e nos deixavam a ver navios. Ou aviões? Ficamos praticamente na mão, sem matéria-prima, pois os cariocas monopolizaram o comércio amoroso. Nossas ações sofreram uma queda brutal na Bolsa de Amor e chegaram à proporção de cinco grandepontenses para um carioca, e, muitos deles, arrogantes diante da situação de mando de campo, tiveram que levar alguns tapas. Estabeleceu-se um clima de disputa no qual perdíamos no feminino, mas ganhávamos no tapa. Alguns deles se tornaram nossos amigos, como Rildo Gonçalves, lançado por mim em teatro, hoje ator e advogado em São Paulo, e Paulo Casals, que também ingressou no mundo artístico do Conjunto Teatral Potiguar, dirigido pelo saudoso Sandoval Wanderley, e, do qual, eu era integrante e diretor de cena. Mas a grande verdade é que aqueles meninos cariocas infernizaram a nossa vida amorosa, até que as tais provincianas descobriram que a única coisa que nos diferenciava era o sotaque, porque o resto era tudo igual, principalmente em tamanho e competência.





O Grande Ponto de todos os tempos
Ubirajara Macedo

Lembro ainda o tempo em que o Grande Ponto era apenas um Café, como se chamava, na época, estabelecimentos onde somente serviam café pequeno, algumas vezes acompanhado de pão e manteiga. Por ali, no entanto, os bondes da Força e Luz transitavam em direções que se cruzavam, ora para a Ribeira, ora para o Tirol e Petrópolis.
Era um verdadeiro cruzamento de linhas. Não havia ônibus, que vieram muito depois, e por esta razão, isto é, por ser o Grande Ponto o início das várias linhas, era muito movimentado. E, em termos relativos, era muito mais do que hoje.
Naquela época, isto é, nos idos de 1935, quando cheguei para morar em Natal, a cidade possuía menos de 40 mil habitantes, mas o movimento era intenso.
O Café Grande Ponto, como não podia deixar de ser, era freqüentado em todas as horas, e isto não somente durante o dia, mas até altas horas da noite, entrando pela madrugada.
Passaram-se os tempos e, com a modernização dos meios de transporte, com a chegada dos ônibus, no início pobres no seu aspecto, pequenos e desconfortáveis, o movimento no Grande Ponto tornou-se pequeno, pois não mais de via ali o trânsito das pessoas que vinham dos diversos bairros, para pegarem o transporte de bonde para outros locais.
Mas a fama ficou.
O Café, que deu nome àquela quadra, desapareceu, e, hoje, um edifício de seis andares ocupa o espaço antes reservado ao famoso ponto de comércio.
Mas os intelectuais, políticos, esportistas e boêmios não deixaram de freqüentar o local. Tornou-se referência obrigatória, até para encontros com hora marcada. Lembro-me bem que, na época da II Guerra Mundial, Natal, com o seu conjunto de bases (aérea, naval e terrestre), recebia o impacto de soldados, principalmente americanos, que ficavam aqui servindo nas suas unidades, e, também, de passagem para a Europa e África.
Então, o Grande Ponto era uma festa, onde as jovens mocinhas da época desfilavam em busca de paqueras. E muitas se deram bem, casaram-se e foram morar na terra do Tio Sam.
Futebol, política, vida alheia, futricas da sociedade eram pratos cheios para quem freqüentava o Grande Ponto. Grandes nomes da sociedade natalense passavam horas ali e adentravam a noite jogando conversa fora, procurando passar o tempo, numa época que não havia televisão e as novelas não existiam
Falava-se mais em futebol, e eram muitas as discussões em dia de ABC X América, isto no que diz respeito aos esportistas, mas os intelectuais tinham também as suas rodas.
Hoje, são poucas as pessoas que ainda freqüentam aquela quadra que, recentemente, recebeu o nome (muito justamente) de Grande Ponto Djalma Maranhão.
A saudade de quem conheceu o que era o Grande Ponto nos anos 30, 40 e 50 vem à tona, quando passamos por ali, dada a diferença dos dias de hoje.
Mas o Grande Ponto é eterno e Deus queira que alguém não se lembre de chamá-lo de “point”, como é moda nos dias de hoje, quando o colonialismo cultural de muitos descamba para a subserviência e a indignidade de ferir e desprezar a nossa língua.






O Novo Continente
Graco Medeiros

Cruzamento da Avenida Rio Branco com a Rua João Pessoa e demais quarteirões adjacentes. Eis aí o pequeno reduto da alma natalense, o território livre dos xarias e bastião privilegiado dos grandes acontecimentos registrados ao longo da história ou mesmo à luz da narrativa pitoresca dos nossos mais significativos cronistas.
Djalma Maranhão, o poeta-prefeito que morreu no exílio sem concluir a ode dedicada a Natal, era detentor de um sentimento nativista inigualável e, como que possuído pelo instinto de grande animal político, demarcava o seu território cravando, todos os anos, no início da década de sessenta, monumental árvore de natal no coração da cidade, também chamado de “O Grande Ponto”.
Ladeando a Praça Kennedy, mais conhecida nessa época como “praça das cocadas”, reinava, soberbamente, o maior magazine da cidade. “O Novo Continente”, loja vulnerabilíssima para os padrões de segurança de hoje, desprovida de portas de aço e arrodeada por grandes vitrinas, cujo subgerente era um velho decano dos comerciários do centro da cidade, chamado Luiz Cleodon de Medeiros, meu pai.
O local ainda era famoso por abrigar, em seu primeiro andar, o legendário “Natal Club”, recinto restrito aos políticos e figurões da cidade onde se praticava, com a devida conivência, diversas jogatinas, além de concorrido carteado.
Todos os grandes eventos, desde as mais tradicionais festas populares como o São João, o ciclo natalino e o carnaval, passando por datas comemorativas das forças armadas, como “A Semana da Asa”, “Dia do Marinheiro”, “Dia do Soldado” e acontecimentos cívicos como a “Semana da Pátria”, faziam das vitrinas de “O Novo Continente” o grande foco de atenção por parte de centenas de transeuntes e freqüentadores do Grande Ponto.
Durante essas efemérides militares, era comum as vitrinas se transformarem num verdadeiro paiol de munição, com todos os tipos de artefatos bélicos disponíveis na época. Um verdadeiro arsenal à mercê de qualquer um que ousasse, durante as ermas madrugadas, uma simples pedrada.
Mas era, ainda, a pequenina e pacata Natal do início dos sessenta, onde a periculosidade de “Baracho” e as delinqüências de “Luciano Nicotina” não chegavam, nem de longe, a causar esse pânico urbano dos dias de hoje.
Jantava com meus pais, após ouvir o seriado radiofônico “Jerônimo, o herói do sertão”, quando um jipe “Willis” do exército estacionou em frente da casa onde morávamos, na travessa Padre Calazans, entre as ruas Santo Antônio e Padre Pinto.
Um tenente, comandando um pequeno destacamento composto por um sargento e um praça, bate palmas diante da porta e exclama com voz solene:
- “Seu Luiz, o Senhor está intimado a nos acompanhar até o “Novo Continente” para recolhermos, urgente, todas as armas e munições das vitrinas”.
Dona Nenzinha, que não atinava ao certo o que ocorria e temendo a prisão de meu pai por causa das “velhas histórias” sobre a Intentona Comunista de 1935, exclamou atônita, na frente do oficial, sob o olhar surpreso de meu pai:
- “Tá vendo, Luiz? Bem que eu pedi pra você votar no Lott. Eu sabia que esse Jânio era um perseguidor!”
Tão logo o jipe deu partida conduzindo meu pai, saí na maior carreira com uma leva de meninos da vizinhança pensando que “soldados inimigos” vinham tomar, na marra, as armas e munições expostas na loja onde o meu pai trabalhava.
E assim, “fechou o tempo” na Cidade Alta para ver a movimentação de soldados do exército, com roupas de campanha e um baita caminhão verde-oliva toldado, ocupar o passeio público, para retirar a parafernália de guerra das vitrinas de “O Novo Continente”. Era, justamente, a noite de 24 de agosto de 1961. No dia seguinte, “Dia do Soldado”, Jânio da Silva Quadros comunicaria sua renúncia a um país perplexo.
Hoje, ainda pasmo, sou levado a crer que as tais “forças ocultas” também assombraram lá em casa e, depois, foram se fartar dos “despachos“ nas vitrinas de “O Novo Continente”, em pleno Grande Ponto, no coração de Natal!





Calçada do Café São Luiz
Eugênio Neto
A República
04.12.81

A “Calçada do Café São Luiz” é, hoje, para nós, seus freqüentadores, verdadeiro estado de espírito. Não se entende começar o dia sem uma chegada até lá. Quando um de nós deixa de comparecer, a turma já procura saber se está doente. No “ficcus benjamim” da calçada, há, talhado com canivete, os nomes dos fundadores. Há a turma da manhã., da tarde e da noite. E os que estão nos três expedientes, como é o caso do professor Meroveu Pacheco Dantas. Uma turma eclética, que conversa sobre tudo. Fala-se de política, futebol, literatura, mas, principalmente, contam-se anedotas.
E, nisto, reina absoluto nosso Nélis Pinheiro, técnico da Arno do Brasil. Um amigo admirado dizia que, mesmo nos encontrando há anos, discute-se mas nunca há uma briga séria. E note-se que a brincadeira entre Nélis e Vital, muitas vezes parte para a grossura. Nélis com uma mancha roxa nas costas, Vital com um hematoma. Tudo brincadeira. Houve até guerra de sabugo, quando esta custava mais caro que a espiga de milho. A turma começa a chegar bem cedo, para conseguir estacionamento na sombra. Geralmente chegam primeiro os irmãos Juvino e Zé Palácio, comerciantes. Juvino tentando estacionar o seu Caravan onde ninguém se encosta, para não arranhar a pintura. Carro de banho diário. Lula (sem ser o metalúrgico), com a Brasília marrom. Aí, chega o professor universitário Meroveu Pacheco Dantas, e pára em qualquer parte o seu Fiat pulga. Vital comprou um Maverick dourado do homem da Polícia Federal, e reveza com o seu jipe de pescaria, no beco de José Treco.
Mas, o negócio anima, quando chegam essa figura espetacular do magistrado e pessoa humana que é Altanir Borges e o consultor jurídico da Câmara Municipal, José Martins (Zequinha). É a vez de Ernani Couceiro (Motinha) contar as novidades do país das Rocas. Itamar Vale chega trazendo seus versos matutos. Walfran de Queiroz exibe seu mais novo trabalho, em prosa ou verso, em louvor a Javeh, Brama, Alah, Maomé, ou seja lá quem for. E ai de quem não concordar com ele. Pedrinho, que não gosta de discutir, nunca teimou na vida dele. Padre Zé Luiz aparece e, lá da Calçada da Gruta de Ali Babá (Fininvest), vai dizendo: “Preciso falar contigo.” Discreto, falando baixo, nosso professor Manoel Rodrigues, presidente perpétuo da Academia Norte-Riograndense de Letras, conversa com Minervino Wanderley, Luiz Rabelo e Sebastião Soares. Falam de trovas e Rabelo exibe mais um troféu ganho em Portugal.
“Dão” chega rápido e convida todo mundo para tomar café, na sua proverbial prodigalidade. Cara gastador tá ali. Eider Mesquita, vestindo o último modelo da camisa Raquel, bem penteado, vem com Alcides Araújo e Nazir Tahim para o cafezinho sempre pago pela Nazir, outro caboclo gastador.
À noite, a turma é outra. Às 19 horas em ponto, chega Pedro de Oliveira, encostando suavemente sua Mercedes Benz Lotus. Depois, com Zé Seráfico e Trigueiro, vêem, na televisão do carro, o noticiário da Globo. Jair Navarro, médico e odontólogo, demora pouco. O médico Silos aparece menos, sempre falando sobre o carro mais novo, geralmente importado. O último pertenceu à Embaixada do Kwait. No Sábado, à tardinha, “boca da noite”, tem a turma do Canto do Mangue. Juvino, os dois Pedro, Meroveu e outros.
A calçada do Café São Luiz é um lugar cosmopolita, onde se discute tudo, se fala de tudo, menos da vida alheia. Uma sugestão ao industrial Roberto Veiga: mandar botar uns bancos na calçada do Café. Manda?






O Grande Ponto existe?
José Luiz Silva

O Grande Ponto não existe. Onde é que fica o Grande Ponto? Existe o Café São Luiz. Tão importante quanto o Café de La Paix, de Paris, onde Sartre, diariamente, respirava seu existencialismo e os episódios tristes e heróicos da guerra são permanentemente ruminados.
No Café São Luiz, diariamente, de graça, você poderá escutar os poemas de Luiz Rabelo ou as quadrinhas de Soares. Declamados por eles.
No Café São Luiz, permanentemente, há gritos e olhos arregalados: são os poemas de Walfran de Queiroz, feitos metafisicamente para Alá.
No Café São Luiz há sonetos vendidos por Milton Siqueira, distribuição ostensiva de cultura, sem esquema, sem escola, peripatética, transmitida ao vivo, saboreada com café.
No Café São Luiz, João Batista de Lira é um aleijado amigo de todos, que faz marketing da esmola, ficando perto do caixa, aguardando infalivelmente o troco.
No Café São Luiz, você escuta opiniões de Carrapicho, Manoel Rodrigues de Melo, Pimenta, Nogueira, Romeu, Prestes, Jovino, Danilo Martins, Sinésio, Zé Edson, Eugênio Neto, Nilo, Meroveu, Catolé, Carioca, Paulo Martins, Motinha, Pé de Chumbo, desembargadores, poetas, juizes, aleijados – tudo ao mesmo tempo e no mesmo espaço.
No Café São Luiz, há salinas e miragem, porque, todos os dias, Pedrinho, Amom, Apolônio. Geraldo, Chico Cavalcanti, Aluísio de Antão, Ivan de Zé Bezerra, Magela, Zé Alves e Delau carregam, nas costas, as saudades de Macau, sem barrilha e petróleo, mas fiel a seu destino.
No Café São Luiz, todos os dias, se escutam os desaforos de Gasolina; e os cheques que retornam, se chamam boêmios. Nenhuma calçada é mais temida. Sua força é maior que a “Crônica Social”, de Jairo Procópio.
No Café São Luiz, há um juiz distribuindo fichas de café: Dr. Dário Jordão. Uma espécie de oásis. Ontem, o surpreendi sozinho, na ponta da calçada, sofejando “Sonho meu”, de Dona Ivone Lara. Somente lá, um octogenário consegue sonhar. E a gente só envelhece quando não sonha mais.
No Café São Luiz, os prefeitos de Brejinho e Extremoz assinam o ponto; Severino Galvão organiza mistérios; políticos passam pelo crivo das deduções; Absalão traz notícias do forró de Joaninha de Pipiu.
Eu já vi, no Café São Luiz, o reitor Diógenes explicando a origem do verbo recuar e; o Grande Ponto deserto porque morreu Luiz Veiga.
No Café São Luiz, Bosco Lopes me garantiu que, um dia, governaria o estado (de embriaguez).
Quem vai ao Café São Luiz? Os puros? Os viciados? Os desocupados?
A calçada do Café São Luiz é o território livre dos potiguares. Antes, bem muito antes da abertura, a liberdade era (embora cochichadamente) exercida em puro estado de graça.
Na calçada do Café São Luiz, é doce escutar os passos da vida. E, onde reside a vida? Não é nas calçadas?



O Grande Ponto não mais existe
Helmut Cândido

O centro de Natal chamou-se, noutros tempos, “o Grande Ponto”. Esse centro, presentemente, não guarda mais as feições que teve lá pelos anos de 1910 a 1945.
Por essa época, era palco de desfiles carnavalescos e era onde costumava reunir-se a gente daquele tempo. Cinema Rex, Cruz Vermelha, Bar Acácia, onde está o Ducal.
Atualmente, virou feira, mendicância em quantidade, ruído de sons de lojas. Caiu no olvido da população natalense, que não sabe mais o que é Grande Ponto. Perdeu sua fisionomia.
E, relembrando aqueles carnavais, uma papanguzada circuitando em todos os seus cantos. Foi no Grande Ponto que ferveu o carnaval nas décadas de 30 a 50.
O Grande Ponto morreu. Não vive mais. Perdeu-se no tempo.
No presente, não mais se ressente.



O Grande Ponto
Manoel Onofre Jr.

No calçadão da rua João Pessoa, trecho compreendido entre a Princesa Isabel e a avenida Rio Branco, as rodas de conversas se formam pela manhã, de tardezinha e à noite. As pessoas – políticos, funcionários públicos, profissionais liberais, estudantes, etc. – batem papo, comentam notícias do dia, entre um cafezinho e outro tomados no Café São Luiz, a alguns passos, na rua Princesa Isabel (e sempre arriscam um olho no mulherio que vai passando, vindo das compras). Neste local de muita tradição – o Grande Ponto famoso – as mulheres não param. Por quê?
Sala de visitas, centro de convivência, ágora, universidade popular – o Grande Ponto é tudo isto e algo mais. Já teve melhores dias; hoje, apesar de decadente, ainda conta com freqüentadores que nunca deixam de “assinar o ponto”.
Boatos, planos (políticos ou não), discussões, intrigas, amizades, comentários sobre futebol, tudo vive no clima de comunicação fácil. Quanta coisa importante, quantos empreendimentos, quantos poemas têm nascido ali.
A história do Grande Ponto começa com o bar/mercearia que ali havia, com este nome, há algumas décadas (Ficava, exatamente, na esquina da Rio Branco com a João Pessoa, onde se acha o Edifício Amaro Mesquita). Para a cidadezinha provinciana então, o bar servia de ponto de encontro, continuava a tradição dos cantões. Com o passar do tempo, o número de habituês foi crescendo, sobrando da sala, já pequena, para a calçada.

In Guia da Cidade do Natal - 3ª Edição - EDUFRN, Natal, 1998

As "Cocadas"

Dia desses, tive saudade das “Cocadas”. Era com este nome que nós, estudantes irreverentes, denominávamos a Praça Kennedy, no coração de Natal, pelos idos de 60. Ali, nos encontrávamos, toda noite, para bater papo (expressão ainda em uso naquela época). Havia, além da nossa, outras rodas de conversa, naquele território livre do Grande Ponto.
"Cocadas" por quê? Porque a Prefeitura substituiu os bancos da praça por uns blocos de concreto, multicoloridos, logo batizados, jocosamente, de cocadas. E nós nos empoleirávamos neles, horas seguidas, comentando as notícias do dia, falando da vida alheia. Ou observando a fauna que por ali passava a caminho dos cinemas Rex e Nordeste. Freqüentemente, quando era dia de filme bom, a roda desfazia-se mais cedo, íamos à sessão das oito.
Muita gente boa pertencia à turma das "Cocadas". Alguns daqueles jovens tornaram-se, muitos anos depois, nomes expressivos da intelectualidade papa-jerimum: Bené Chaves, Bosco Lopes, Dailor Varela, Eduardo Gosson, Falves Silva, Francisco Sobreira, Franklin Capistrano, Inácio Magalhães de Sena (o mais assíduo), J. Medeiros, Jarbas Martins, Jóis Alberto, Juliano Siqueira, Luciano de Almeida, Luiz Gonzaga Cortez, Marcos Aurélio de Sá, Marcos Silva, Moacy Cirne, Nelson Patriota, Osório Almeida, Otacílio Lopes Cardoso, Pedro Vicente Costa Sobrinho, Vicente Serejo e outros que me fogem à memória.
Eu "assinava o ponto" quase todo dia.
Éramos, em boa parte, esquerdistas - militantes ou simpatizantes. E vivíamos em plena ditadura militar. Mas, a bem da verdade, a militância não se exercia, de modo efetivo, ali nas "Cocadas".
Dentro da turma, havia, afora os intelectuais, a ala dos estudantes de Medicina: Antônio Gil, o boliviano Carlos Rojas, Demócrito Pereira, os irmãos Gilson e Gilton Carvalho, Guaraci Barbosa, João Batista Costa de Medeiros. E outros freqüentadores assíduos, grandes figuras humanas, como Francisco Medeiros, apelidado "Alma de Vaqueiro", Diógenes Pereira, Caju (nunca, jamais ninguém chamou-o pelo nome, Ronald) e Zeland Barros.
Como disse, Inácio Magalhães era uma presença infalível. Sempre com um saco velho, cheio de livros, às costas. Irrequieto, brincalhão, botava apelido em todo mundo. Era o mais velho, tinha uns trinta anos.
Vicente Serejo, o benjamim, ainda secundarista, estudava no Colégio Churchill (fui seu professor de História). Lembro-me de uns escritos de sua autoria, que ele me mostrou, pedindo-me opinião. Prosa tremenda sobre a amada terra de Macau, não prenunciava o excelente cronista que, anos depois, ele veio a ser. Vicente falava, vez por outra, numa jovem que fazia sucesso com um programa sobre MPB, na Emissora de Educação Rural: Rejane Cardoso. Terminou se casando com ela.
João Batista, também intelectual como Inácio e Vicente, começou a namorar a atual esposa, Gizélia, nas "Cocadas". Gizélia não perdia oportunidade de ir ao Nordeste, só para passar por lá e flertar com Batista. Fisgou-o.
Muito magro, Batista recebeu de Inácio o apelido, ainda assim inadequado, de Twiggy. Quem, ultrabalzaquiano, não se lembra da famosa modelo, notável pela sua magreza?
Nisso de apelidos, Inácio era mestre. A Leunam Revoredo, que apregoava em alto e bom som as próprias façanhas sexuais, Inácio chamava-o de Sete Rolas. Os irmãos Demócrito e Diógenes Pereira, "sócios-fundadores" das "Cocadas", eram respectivamente, "O Coração de Jesus" e "Paixão de Cristo", e tudo isto, apenas porque um costumava vestir camisa vermelha, e o outro, camisa roxa.
Gilson Carvalho, que sempre "assinava o ponto", juntamente com o irmão Gilton, era o Dom Bodete, alusão a sua fama de Casanova. E havia ainda o Alma de Vaqueiro, humorista nato, presepeiro que só.
Sem apelido, que me lembre, só Zeland Barros. E eu.
De vez em quando, apareciam nas "Cocadas", para reforçar o time: Antônio Araújo, Antônio Capistrano, Djalma Lopes Galvão, Emanuel Bezerra, Francisco Alves Sobrinho, Francisco Dantas, Geraldo Santos, Gilson Coutinho, Hamilton Coutinho, Hélio Brucutu, Ivanez França, José Tarcísio Medeiros (Zezito), Júnio Siqueira, Justiniano Siqueira (Mano), Lécio Arruda, Leonardo Barata (este já nos últimos tempos da "instituição"), Luiz Damasceno, Luiz Gonzaga Cortez, Manuel Fernandes (Volontê), Nestor Vieira e Paulo Rocha (Palocha).
Onde anda, hoje, esse pessoal todo? Cada um tomou o seu rumo. Somente três - Emanuel, Hélio e Nestor - viajaram para a eternidade. Emanuel eliminado pela repressão da ditadura, tornou-se legenda. Todos, ou quase todos, "venceram na vida". Viraram profissionais liberais, professores, jornalistas, funcionários públicos. Estão bem. Mas, eu acho que dariam tudo para voltar àqueles tempos das "Cocadas".

In Recordações do Paraíso - Academia Norte-Riograndense de Letras
Natal, 1999.





Uma Ágora chamada "Cocadas"
Inácio Magalhães de Sena

Em depoimento exclusivo, o escritor Inácio Magalhães de Sena reaviva as suas lembranças dos anos 60, em Natal, focalizando, de modo especial, o Grande Ponto - "coração da cidade" - e a praça Kennedy, então denominada, jocosamente, Praça das Cocadas.

Comecei a aterrissar no Grande Ponto no ano da graça de 1963. Já havia uma comoção nacional em torno dos fatos sociais e econômicos, de que o Socialismo parecia ser a solução.
Surgiam pela Pracinha das Cocadas rapazes cabeludos que chocavam os transeuntes tupiniquins. Época de Sartre, de Camus, dos filmes do Cinema de Arte, filmes tão complicados como "Teorema", de Pasolini, e "O Eclipse", de Antonioni. Eu ficava esperando uma palavra luminosa de Moacy Cirne, Franklin Capistrano, Gilberto Stabile e outros doutores na interpretação esotérica dos filmes. Apareceu, então, Vicente Serejo, falando em José Lins do Rego, José de Alencar e tantos outros escritores, já mostrando rara inteligência no que dizia ou analisava. Manoel Onofre Júnior, bacharelando em Direito e assistente jurídico da FUNDHAP, já pensava na "Primeira Feira de José", enquanto lambreteava pelas ruas da cidade.
"As Cocadas" foi a denominação dada aos monstrengos quadrangulares que, partindo de uma base no chão da praça, substituíam os bancos tradicionais.
Aos poucos, foi se formando, ali, uma fraternidade de amigos que, em parte, dura até hoje. De lá, partíamos para passeios a Extremoz, Ponta Negra, Lagoa do Bonfim, Jenipabu e até Recife.
Eu não devia mencionar nomes, por acabar esquecendo algum. Mas como esquecer Juliano Siqueira, uma das inteligências mais sedutoras que conheço - mártir, nos execráveis anos de chumbo, hoje bem vivo; seus irmãos Mano e Júnio, inteligentíssimos e muito bem-humorados. Carlos Tinoco, Bonga (irmão deste) e Luciano de Almeida estudavam seriamente a doutrina marxista. E no meio desse povo todo aparece Francisco de Paula Medeiros, recém-saído da Marinha, recebido por mim num palanque natalino do prefeito Djalma Maranhão. Pela sua maneira extrovertida e características bem seridoenses, Medeiros foi apelidado por este que vos escreve de "Alma de Vaqueiro". E depois foi aparecendo um rapazinho magro que, batizado de Twiggy, viria a revelar-se, anos depois, excelente médico e amigo dos seus amigos, como poucas pessoas são capazes de ser. Seu nome: João Batista Costa de Medeiros, bom e culto em muitas áreas do conhecimento humano.
Dando adeusinhos, pelas Cocadas, passava Gizélia, com quem Batista veio a se casar e tiveram filhos maravilhosos.
E no SESC, magrinha e elétrica, conheci Rejane Cardoso, que participava dos auês da época, com camisa de desenho inglês, e que recebeu de mim o apelido "Calangro britânico". Ela estava no corruchiado da Rádio Rural, com debates inteligentes e daí surge seu casamento com Vicente Serejo.
No Grande Ponto, toda noite, "assinavam o ponto" os irmãos Diógenes e Demócrito Pereira, excelentes amigos, exímios derrubadores de Ron Montilla. E nossa turma é abrilhantada com a aparição de Zeland Barros, que me escandalizou ao dizer: "quem é esse galego tão imoral?" Ótima pessoa, seria futuro redator do "The Cocadas Times", juntamente com os irmãos Gilson e Gilton Carvalho, aplicados estudantes de Medicina.
Agregado e amigo nosso, Manoel Sérgio, enfermeiro e estudante, lutando, titanicamente, para conquistar um lugar ao sol, que afinal conseguiu, formando-se em diversos cursos, e chegando a exercer a Magistratura, sem perder sua simplicidade. Antes de diplomar-se, academicamente, já era mestre e doutor na universidade da vida.
Antônio Capistrano, outro amigo das Cocadas, seguiu caminho semelhante - da livraria Walter Pereira a importantes cargos universitários e políticos, de quem cobro muito pelo afeto, em nosso relacionamento, juntamente com Francinete (Neta). Eles venceram grandes batalhas, com filhos que vi nascer, e por quem quero muito bem.
Não poderia encerrar estas mal traçadas linhas, sem nomear Hélio Brucutu, uma grande figura, excelente amigo, contador (e ator) de ótimas anedotas. Já foi para as campinas eternas, e deixou marca profunda nos seus amigos.
No momento, só disto me lembro, e passo para o ponto.

In Revista da Academia Norte-Riograndense de Letras, nº 32, Vol. 44
Julho/Dezembro de 2001.



Sociologia do Grande Ponto
Raimundo Nunes

Ao menos no sentido figurado, se deve admitir que as cidades têm alma. Como nem mesmo a teorização religiosa consegue localizar a sede da alma humana, a alma de uma cidade terá apenas uma indicação convencional filosófica.
Partindo desta conceituação, a alma da cidade do Natal localiza seu fulcro de irradiação tradicional de convergência e cruzamento de todas as pessoas que transitam na intercomunicação dos bairros. Localizado na Cidade Alta, com limites teóricos, entre a avenida Rio Branco - rua Princesa Isabel - rua Ulisses Caldas e rua Apodi, o Grande Ponto não somente situa uma espécie de centro geográfico da capital, como assume o centro afetivo de encontro e relacionamento de um permanente potencial de sua população.
Ali, se reencontram diariamente as velhas amizades, enquanto se entrosam e se consolidam novas disposições de estima. Fala-se de tudo, não raro, envolvendo quase todos. Política, futebol, custo de vida, voragem inflacionária, atuação dos poderes públicos, noticiário geral, incursões literárias e tudo mais que possa envolver a abrangência do jargão fofocário.
Quase todas, ou mesmo todas as capitais do país cultuaram a tradição do seu "Grande Ponto". De conhecimento próprio, citarei Fortaleza - com a praça do Ferreira. João Pessoa - Ponto de Cem Réis. Recife - Café Lafaiete, emigrando depois para a esquina da Sertã. Maceió - a rua do Comércio. Aracaju - a praça do Palácio do Governo, que mantinha ponto tradicional de reunião, designado com uma sigla: DIVA, que se traduzia em Departamento de Informações da Vida Alheia. Rio de Janeiro - a famosa e tradicional Galeria Cruzeiro, local de curtição da boemia carioca. Porto Alegre - rua da Praia, onde o gaúcho libertava a costumeira loquacidade. Até São Paulo, quando aqui cheguei, nos idos de 1958, mantinha meio burburinho, um ponto de bate-papo, por incrível que pareça, na esquina das avenidas São João e Ipiranga, onde as pessoas conversavam, gesticulavam e discutiam até alta madrugada. Hoje, infelizmente, aquele local de relacionamento espontâneo se transforma num estuário de distorções humanas, onde pululam travestis, marafonas e trombadinhas.
Apenas Brasília jamais gozou das prerrogativas sociológicas do seu "Grande Ponto", em virtude das peculiaridades de sua estrutura urbanística, sendo, por isto mesmo, apontada como "cidade sem alma".
Atualmente, assistimos ao declínio, senão a extinção total destes recantos pitorescos de sociabilidade descontraída. As modificações dos costumes, as dificuldades crescentes do cotidiano, a velocidade dos tempos na sucessão dos acontecimentos, a sensação de insegurança, a impunidade da violência e do crime - tudo concorre para a desativação desta modalidade informal de lazer, enquanto Natal conserva quase inalteradas as características do Grande Ponto. Acredito que o horário noturno, o mais solenemente concorrido no passado, se encontre em plena desativação. Em contrapartida, são mantidos dois períodos de "expediente" efetivo - entre 11 horas e meio-dia, e entre 4 e 6 horas da tarde, onde a vida tem continuidade na arte do encontro. Nos instantes de sociabilidade descompromissada, preenchendo os espaços afetivos.
Porque o Grande Ponto ainda é a área sensível de participação da alma plural. De identificação da alma comunitária.

In Sociologia do Grande Ponto. Secretaria da Educação do Estado da Paraíba
João Pessoa, 1985.





Grande Ponto?
Pe. Agustin Juan Calatayud y Salom SJ

"O ser divino de Jesus se encontra em seu ser profundamente humano" - Karl Rahner

O quê poderia dizer em português, na sua variante nordestina, um padre estrangeiro, sobre o Grande Ponto de Natal? E, ainda, limitado por ser espanhol, cuja língua-mãe não é o castelhano, senão o valenciano? Valência, minha cidade, cujo grande ponto nos tempos de minha avó (fins do XIX e começo do XX) era conhecido como Praça Emilio Castelar; em minha infância e juventude, foi a Praça do Caudilho (referência ao Ditador, Franco) e, depois, com a chegada da monarquia e da democracia, após o choque entre a direita e a esquerda por chamá-lo de Praça do Reino de Valência ou Praça do País Valenciano, findou por ser a neutral Praça de l'Ajuntament (da Prefeitura)!
Comparando o Grande Ponto do Natal de minha maturidade com aquele grande ponto de minha adolescência e juventude, posso dizer, resumindo, que a humanidade é uma só. Os mais de dois mil anos de história de minha terra natal, que começara com a instalação dos "valentii" romanos, conduziram-na até o mesmo lugar dos quatrocentos anos de história de minha terra vital, Natal, que começara com a chegada dos portugueses à terra de Poti. Portugueses? E espanhóis!
Como não lembrar o valenciano, padre, jesuíta e construtor que foi quem dirigiu as obras do primeiro Forte de Natal e da primeira Igreja de taipa, dedicada à Nossa Senhora da Apresentação, Pe. Gaspar de Sanperes?
Hoje, a expansão que lá se verticaliza e absorve as outrora pequenas cidades vizinhas, manifesta-se aqui do mesmo jeito: o Natal do além Potengi explode até Extremoz e São Gonçalo, enquanto que o aquém-Potengi absorve Parnamirim e Macaíba. A expansão, lá e cá, provocada pelas neuroses sociais econômicas e consumistas, uniformizadas pela estética moderna, fazem sucumbir os velhos hábitos de relacionamento humano que, se outrora era pessoal e personalizante, hoje é massivo e massificante. Consequentemente, somos confinados à solidão da TV ou à procura na Internet de novos relacionamentos, agora virtuais, a gosto do consumidor.
De todos os modos, lembra-me nosso Grande Ponto, que se articula ao redor do eixo que vai desde a Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, caminha pela praça do Pe. João Maria, praça Presidente Kennedy, até a Nova Catedral... Lembra-me, digo, o Montmartre de Paris, de minha juventude de padre estudante. Pelo metrô, chegava até o Pigalle, com seu Moulin Rouge e etc. que, obviamente, não vou descrever, pois "mutatis mutandis", corresponde a qualquer "zona" de qualquer grande cidade do mundo. Depois, caminhando, remontava lateralmente a colina de Montmartre, onde se encontravam dúzias de pessoas caraterizadas "a lo" existencialista, sartriano, progressista, anarquista, artista, intelectual, estudantes, turistas. Parava-me perante um pintor de calçada, tomava um café quente no inverno ou uma cervejinha gelada no verão, em qualquer bar. No fim, chegava ao cume, à Igreja do Sagrado Coração de Jesus que, não sei porquê, sempre me pareceu um imenso e branco bolo de noiva. Rezava um pouco diante do Jesus no Santíssimo Sacramento.
Hoje, quando caminho pelo nosso Grande Ponto, observo nossos tipos humanos: os costumeiros pedintes nas calçadas, com ou sem equipamento de som; os vendedores das lojas, às vezes atarefados, às vezes convidando os que passamos para comprar qualquer coisa; as pessoas interioranas ou de bairros mais distantes, que se apressam no calor da tarde, transpirando simplicidade; os biscateiros; os "guardadores de carros"; os funcionários públicos, alguns engravatados, outros de calção, alguns descabelados, barbudos, tatuados, estudantes dos vários colégios públicos, privados ou religiosos tradicionais... Enfim, lojas, "self services", restaurantes populares... Na realidade, o luxo ficou para os "shoppings" (e que Deus nos perdoe a todos a introdução em nossa linguagem destes termos). Cada tipo humano me comunica algo: a pobreza, a energia da adolescência e da juventude, a luta pela sobrevivência, a decepção ou o fracasso da vida, a sociedade que consome o que não precisa, o religioso que procura a igreja, o palhaço que orienta os pedestres, o intelectual, o bêbado, o doente, o artista...
Durante o dia, minha caminhada, sempre interrompida para saudar um paroquiano ou um conhecido, termina invariavelmente na contemplação dos quatrocentos anos de história de Natal, na Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, e rezo... De tarde e de noite, às vezes é o profundo silêncio, mas, às vezes, é o barulho da seresta ou de qualquer música, a fala alta dos meus vizinhos comunistas, artistas, intelectuais, daqueles que procuram no luar, na cerveja e na camaradagem desafogar as pressões do dia e da vida, no meu Beco da Lama, no bar do Pedrinho, meu vizinho.
Às vezes, ainda, tenho boas conversas sobre qualquer tema: religião (como não?!), política, filosofia... ou sobre os simples fatos da vida partilhada e compreendida pelo relacionamento humano e fraterno com meus vizinhos noturnos, que Deus abençoe!
Hoje, para mim, o Grande Ponto de Natal é meu lar. O charme de sua história e de sua decadência me atingem de cheio, pois minha vida que se passou no meu grande ponto natal, Valência, volta a mim intacta, apenas tomando outras formas, no meu Grande Ponto vital, Natal.






Faces do Grande Ponto
Alexandro Gurgel

Foi pelas mãos do meu avô Arnaldo, homem forte de pele avermelhada, sertanejo de Caraúbas do Apodi, que conheci a rua Laranjeiras, na Cidade Alta, e que tanto me encantou no início dos anos setenta. Vivi boa parte da minha vida naquela casa de número quatorze, ouvindo o galo da igreja Santo Antônio cantar, anunciando as horas do Grande Ponto.
Sempre pensei que o Grande Ponto era toda a área da Cidade Alta. Mas, muita gente tem certeza em afirmar que o Grande Ponto é o trecho que implica o cruzamento da rua João Pessoa com a rua Princesa Isabel, estendendo-se, culturalmente, da calçada do Café São Luiz ao Sebo Vermelho, e ainda com seus tentáculos alcançando o Beco da Lama, reduto etílico do Grande Ponto.
Na verdade, não há maneira de medir onde começa e onde termina o Grande Ponto. A Cidade Alta é o próprio Grande Ponto, onde artista popular pode fazer sua performance e é lá, que os poetas devem declamar seus versos. É o espaço perfeito para cantigas de cordel, onde os repentistas se enfrentam em desafios de viola e a multidão forma uma grande roda, todos ansiosos pela peleja da música sertaneja.
A avenida Rio Branco é via preferida por todo aquele que quer exprimir seu descontentamento com o governo. Seja estudante ou grevista, ele faz seu protesto em pleno Grande Ponto e a repercussão é sentida por toda a cidade. O calçadão da rua João Pessoa sempre foi uma arena ao ar livre, um termômetro vivo, medindo todo tipo de manifestações que há no centro.
Quando eu freqüentava o catecismo na Igreja Matriz de Santa Terezinha, o point era o Grande Ponto. Quando não havia shoppings e o Alecrim – muito além da feira aos sábados – era um comércio alternativo, a Cidade Alta se convertia em uma espécie de “estacional jovem”.
Nas tardes de domingo, as meninas usavam roupas do tipo “cocotas” e os rapazes vestiam calças “boca-de-sino”. Toda aquela juventude era embalada pela banda Impacto Cinco nos salões da ASSEN, dançando de rosto colado ao som de Love Hurts. John Travolta e Olívia Newton John, nos tempos da brilhantina, encantavam a galera nas telas do Cine Rio Grande.
As noites natalinas, na avenida Rio Branco, eram cheias de glamour, a paquera rolava solta. A loja Quatro Quatrocentos era a grande atração, com sua escada rolante – a única na cidade – entupida de gente para as compras de final de ano.
Os encontros mais descabidos sempre foram marcados nas cercanias do Grande Ponto. A calçada atrás da Lobrás, na rua Princesa Isabel, era o “pedaço” mais festejado. De lá, ao entardecer, as pessoas buscavam o pôr-do-sol na Pedra do Rosário, para contemplar a beleza daquele momento, vendo o sol cair mansamente, escondendo-se nas dunas da Redinha, do outro lado do rio Potengi.
O vinho Jurubeba, de mão em mão, era bebido na boca da garrafa, embriagando aquelas testemunhas do crepúsculo aos pés da Santa.
Ao lado da Pedra do Rosário, no Largo da Misericórdia, as quadrilhas improvisadas de São João sempre foram uma tradição na Cidade Alta. Atraíam toda a vizinhança dos outros bairros – reunia mais gente do que na procissão de Nossa Senhora da Apresentação, em novembro.
Das Rocas até as Quintas, todos esperavam o ano inteiro por duas semanas de festejos juninos, uma espécie de confraternização entre xarias e canguleiros. A festança seguia dia e noite com muita pamonha, canjica, milho assado e forró de pé-de-serra.
Hoje em dia, com o crescimento natural da cidade, os valores se transformam, nascem, em cada esquina, outros pontos de agitação juvenil. A Cidade Alta continua se adaptando a uma nova realidade, vivida por comerciantes e moradores que permitem a transição constante do Grande Ponto. Já não há mais as festas juninas no Largo. Os namorados preferem as praias e lugares mais longínquos. A moçada jovem, do novo milênio, quer sair pulando atrás do trio elétrico no Carnatal, esquecendo os blocos carnavalescos e tribos de índios que desfilavam na avenida Deodoro da Fonseca. O centro resiste, camelôs e lojistas dividem glórias e amarguras na disputa pelo freguês habitual.
O badalar do sino da Igreja do Galo continua preciso e atento às mudanças da Cidade Alta.
O centro de Natal, apesar dos shoppings centers, ainda é o coração financeiro da cidade. Os grandes bancos, lojas de roupas, magazines, sapatarias e lojas de eletrodomésticos, estão reunidos nas adjacências do Grande Ponto, formando um setor comercial importante para Natal.
Durante a noite, quando a cidade adormece, o Grande Ponto abriga todos os problemas de uma cidade em crescimento.
Os “sem-teto”, que, na sua maioria são imigrantes do sertão, procuram as marquises das lojas para se protegerem da chuva e do vento frio que vem do mar.
Os notívagos, em busca de aventuras e prazeres desordenados, encontram nas meninas de vida fácil companhia momentânea para preencher a alma. Vigias circulam entre os prédios com seus apitos, guardando as vitrines para mais um sábado.
Ao amanhecer, somente os vendedores de cachorro-quente podem lhe salvar da fome e da sede, testemunhando juntos a vida no Grande Ponto, que nunca dorme.
A cultura natalense é mais expressiva no centro da cidade, de onde surge o encontro de intelectuais e artistas, os quais perambulam, entre livrarias e sebos, em busca de inspiração e conhecimento. A calçada do Café São Luiz sempre foi o lugar preferido do meu avô Arnaldo, aonde as principais “resenhas” dos acontecimentos da cidade chegavam primeiro.
Atualmente, o Sebo Vermelho reúne, em dias de sol forte, os homens mais relevantes da nossa cultura. Entre goles de café e a busca pelo bom livro, enquanto discutem idéias, eles escrevem a história viva do Grande Ponto.





Fatos da minha memória
Raquel Alves de Sousa

Domingo, ao passar pelo Grande Ponto, me veio à memória o ano de 1965. Oh! Que maravilha! Estava com meus treze anos, saindo junto a minha mãe para irmos ao Cinema Rex. Após o cinema, íamos até o Ky Show, onde víamos paqueras e amigos.
Existia o Foto Jaecy; a Confeitaria Cisne, onde comprávamos guloseimas e reinava o garçom Américo; a Cantina do Maiorana – Casa Vesúvio; a 4.400, depois Lobrás; o Edifício Amaro Mesquita, com seus consultórios médicos, dentários e escritórios... Quem não se lembra do gastroenterologista Gilberto Wanderley, irmão do nosso querido e saudoso jornalista, crítico e apaixonado por cinema, Berilo Wanderley?
Ocilene Guedes, dentista e professor da UFRN, seu consultório se situava no Edifício Amaro Mesquita; a Farmácia Confiança; Farmácia Santo Antônio; Casa Rio; a Galeria Olímpio; a Casa Lux ou Natal-Lux, entre outras. Como lembro!
Nesses Fatos de minha memória não poderia jamais deixar de citar o Granada Bar, de Nemésio, onde gente da sociedade natalense e políticos se reuniam e saboreavam as delícias da Espanha.
O Granada Bar era próximo ao Grande Ponto. Cito algumas pessoas que o freqüentavam: Berilo e Rômulo Wanderley, Lauro Arruda, Lauro Alves de Sousa, Veríssimo de Melo, Leide Morais, Gilberto Wanderley, Jota Epifânio, Newton Navarro, Dinarte Mariz, Jair Navarro, Jurandir Navarro, Iaperi Araújo, Geraldo Melo, Aluízio Alves, Agnelo, Luís de Barros, Fernando Paiva, Moacir Maia, Grilo, Carlos Lyra, Paulo Macedo, todos iam ao Granada e depois ao Grande Ponto, para saborear um cafezinho no Café São Luís, ou para um papo legal.
Com o progresso, Nemésio mudou-se, mas o Café São Luiz ainda está bem ali, perto do Grande Ponto, onde podemos ver pessoas conhecidas, como Osório Almeida.
Pena que os anos se passaram e o ano de 1965 ficou para trás em minha memória. Hoje, o Grande Ponto cresceu e o Cinema Rex é só memória.
Mas, apesar do progresso, sempre terei o Grande Ponto com aquela cara, a cara de uma Natal acolhedora e hospitaleira.




O Grande Ponto do amanhã
Franklin Serrão

O Centro da cidade já teve no passado muitos dias gloriosos e seu espaço mais tradicional se chama “Grande Ponto Djalma Maranhão”, lugar de alegres encontros, onde a atividade comercial, os bares, as casas de entretenimento e muitas almas contentes se encontravam na alegre e descompromissada cidade do Natal.
Hoje, para entender o Grande Ponto de Natal é preciso viajar no tempo, onde a afetividade de seus habitantes com o lugar recheava a tradicionalidade em uma cidade que surgia jovem. A história da construção deste nosso espaço geográfico afetivo se confunde com tradição e todos os elementos sociais que produzem modificações através do tempo. As impressões na paisagem, deixadas através dos anos, são indícios autênticos da ação modificadora agressiva dos agentes sociais urbanos nas cidades.
O Grande Ponto tradicional, a exemplo de outras cidades nordestinas, não resistiu à ação devastadora do poder econômico, representado nas cidades pela indústria da construção civil e especulação imobiliária.
Hoje, sofre por inanição, agonizando em seu arranjo urbano, sitiado pelas impressões que os agentes modificadores do espaço caprichosamente arbitraram em seu entorno, e, com o tempo, fez-se prisioneiro da dinâmica de modernidade das cidades que se alargam.
Hoje, não poderia o cruzamento da rua João Pessoa com Princesa Isabel imaginar a expressiva população de carros a disputar espaços com a população humana; não poderia imaginar a comodidade, segurança e concentração comercial da agressiva modernidade dos “shopping centers”; não poderia imaginar a juventude da cidade do Natal violada, confinada aos modismos dos novos espaços da cidade que, padecentes, surgem e desaparecem na mesma velocidade em que se constróem novos solos urbanos.
O centro tradicional da cidade do Natal agoniza, não tem força suficiente para que, sozinho, possa reverter a natureza excludente e segregadora de um crescimento urbano desordenado.
É preciso que haja uma nova consciência comprometida com uma idéia de gestão municipal que caracterize este importante espaço, imunizando-o da ação de uma Prefeitura que reza nas cartilhas dos especuladores e construtores inescrupulosos da cidade.
Basta que o Centro entre numa pauta de resgate de sua importância, inserindo seu conteúdo no processo moderno de construção do espaço geográfico da cidade do Natal.




As feridas expostas do velho centro
Ana Cristina Cavalcanti Tinôco

Quem hoje passa pelo Centro da Cidade Alta não imagina o glamour dos tempos idos. Particularmente não presenciei grandes acontecimentos no Centro da Cidade, mas, tenho ciência de como suas ruas, em especial determinados pontos como o Café São Luiz, o Cinema Rex e até mesmo o Nordeste quando era menos especializado, representaram para a memória dos mais maduros que eu.
Lembro, contudo, no início da adolescência, da Sorveteria Tip Top. Era o ponto de encontro da rapaziada, onde os pães (rapazes) e as cocadinhas (moças) se encontravam. Eu, menina ainda, apenas ansiava por aquela fase tão alegre e colorida. Foi passando por lá que escutei pela primeira vez Raul Seixas cantando pela mosca e enaltecendo a sombra sonora do disco voador. Tempos depois, o point foi transferido para Jaecy Fotografias. Desde aquela época, já havia aqui em Natal esta coisa abominável da efemeridade dos pontos de encontros. Hoje, quando aparece um local interessante para freqüentarmos, me pergunto: Até quando?
O Beco da Lama, e em especial, o Bar do Pedrinho, é um desses points antológicos. Lembro da transferência da entrada principal para a Gonçalves Ledo. O esmero e carinho com que fora decorado. Os célebres clientes em seus horários específicos; os acordes de blues e MPB em longas noites de improviso, que terminavam virando um grande show. Memórias sonoras guardadas nas fibras da alma e do coração. Hoje, o Bar tem sua entrada novamente transferida para o Beco da Lama, que ganha agora nova proposta e apresenta-se como espaço cultural com galeria para exposições e murais com pinturas de artistas contemporâneos.
Esta roupagem boêmica e cultural não esconde, entretanto, as chagas expostas do velho Centro.
Convivendo com intelectuais e pseudos, encontramos todos os naipes da humanidade. Tipos que ao serem olhados despertam a mais profunda condolência, dó, piedade mesmo. Velhas meninas desdentadas que mendigam um real para o cachorro-quente, que, na realidade, será queimado e fumado. Outras, pensando-se sensuais em shortinhos mínimos e encardidos, expõem, junto com o corpo, a pobreza da alma e a falta de perspectivas que encontra em seu habitat. É a cidade com suas feridas abertas. Gente com problemas de difíceis soluções, que de tão pessoais e coletivos passam a ser municipais.
Pergunto-me por que o Centro, tão enfermo e abandonado, tão importante para a preservação da história da cidade, sempre cheio de possibilidades turísticas a serem exploradas, continua tão esquecido?
Recentemente, em meio a uma acirrada disputa pela gestão da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências – SAMBA – descortinou-se uma proposta de trabalho social para ser executado no Beco e seu entorno: Programas com palestras sobre higiene na manipulação de alimentos; qualidade no atendimento ao cliente; sexo seguro; coleta seletiva e reciclagem do lixo, dentre outras facilmente trabalháveis e de grande impacto ambiental, social e visual, que seriam ministradas caso a chapa concorrente fosse vencedora. Mas o sonho foi efêmero e tudo não passou de proposta.
E a pergunta que não deve calar mantém-se no ar: A quem importa as feridas expostas do velho centro? Quem as cuidará?






Coração da cidade amada
Eduardo Alexandre de Amorim Garcia

Rua Nova com Rua do Sarmento:"A Quitanda" fornece o alimento.
Antoniel Campos

Foi o Grande Ponto o ponto de encontro da minha cidade Natal. Era um ponto xaria, habitado por todos os canguleiros da velha Ribeira, que começava a perder encantos e comércio, prostíbulos, bares e almas que subiam a ladeira para a conversa diária e amena de fim de tarde com mortais que surgiam do Tirol, Petrópolis, Alecrim, Quintas, de onde mais?
Foi nesse Grande Ponto onde, ainda criança, tive o primeiro contato com um poeta. Era Tubiba poeta? Um negro alto e taciturno, jamais o vi sorrindo: era um pedinte que escrevia versos a carvão nas calçadas...
Quanto medo me causavam Maria Mula Manca e as estórias do papa-figo, na língua de muitos, a viúva Machado. Como me impressionei com o bate bola doutoral de João Cláudio de Vasconcelos Machado, com seu culhão aloprado, audição diária e obrigatória de todos em seu corruchiado. Ouvi estórias de trambiques de Zé Areia em americanos e era aonde eu costumava ver as rodas que se faziam imensas em torno do gigantesco Luís Tavares.
Como Natal era pequena e comunicativa, acolhedora! Como as pessoas buscavam umas as outras! Daí, os cantões multiplicavam-se nas calçadas que se tornaram estreitas, e as rodinhas invadiram as ruas, pequenas para tanta gente em bate-papos.
Ainda sem televisão, as notícias do mundo chegavam pelo rádio de fio e através dos jornalistas que chegavam das redações falando dos acontecimentos notificados pelo teletipo. Natal era feliz e disso sabia.
O Grande Ponto era o ponto da conversa sobre o futebol de ABC e América, e também para a conversa de todos os esportes amadores, do remo ao futebol de salão, Zé Alexandre, Luís G.M. Bezerra, Aluísio Menezes, Rossini Azevedo, Procópio Neto, Mário Dourado, Everaldo Lopes, Cezimar Borges, Véscio, exemplos de grandes desportistas, freqüentadores assíduos do nobre pedaço de chão natalense.
Era o ponto das conversas políticas acirradas entre aluizistas e dinartistas, e terra dos grandes encontros. Ali, tudo se decidia. Até sobre a vida e a morte, a aliança, a traição.
Nesse grande ponto vi Cascudo passear de manhãzinha, despreocupadamente; ouvi sábios e empolgantes discursos de Newton Navarro; tomei conhecimento da beleza das crônicas de Berilo e Sanderson; vi, pela primeira vez, a encenação do boi-de-reis, o prefeito Djalma Maranhão comandando, ele mesmo, os festejos natalinos e fazendo com que os meninos aprendessem a ler, mesmo que de pé no chão.
Quase que uma de frente para o outro, a Casa Vesúvio esbanjava variedades diante dos que buscavam os drinques do encantado Cisne. Era, ali, o refúgio boêmio das calçadas.
Esse grande ponto, de onde se avistava os morros do Tirol, já não mais existe. Os jovens não sabem o que significou e, se é feita a referência, eles indagam: o que é? Onde é? Os culpados pelo esquecimento somos nós mesmos, que nos tornamos velhos e desprezamos nossas memórias mais íntimas e soberanas.
Djalma, quase esquecemos também. Mas o resgate foi feito e o chão do Grande Ponto hoje tem seu nome: Grande Ponto Djalma Maranhão.
João Machado, glorificado em merecidas honras, tem o seu nome no Estádio de Lagoa Nova, aquele que seria “construído para Parnamirim”, dado à “grande distância” que, à época do lançamento da pedra fundamental, estava do centro de Natal.
Newton Navarro, ainda sem uma homenagem que honre sua história de homem de palavra brilhante, mãos mágicas em traços de encantamento e compromisso com sua gente, pena de poeta grande e prosador de geniais formações, boêmio de sensibilidade e assiduidade inigualáveis, foi lembrado para ser nome da ponte que une a praia do Forte à Redinha, a prainha que ele tanto amava e cantava em seus versos. Que lhe seja feita a justiça!
Zé Alexandre é nome de Largo Boêmio, na rua Chile.
Zé Areia, aquele que vendia frango de urubu por papagaio a gringo de Segunda Guerra, foi folclorizado e jamais deixará de ser citado entre os grandes personagens da Universidade das Calçadas que foi o Grande Ponto.
Assim falando, parece que estamos a dizer que o Grande Ponto morreu.
Não é verdade. Verdade é que a cidade cresceu, expandiu-se. Os tempos mudaram; mudaram os costumes e tiques do natalense, nascido ou chegado. E o Grande Ponto resiste, agora, sem sua Universidade, aquela Grande Universidade dos anos 50, 60, 70 em grandes aglomerações, mas como Grupo Modelo que se mantém fiel, quer nas calçadas do Café São Luiz, quer nas biroscas do Beco da Lama ou Princesa Isabel.
Sim, porque Nazi não morreu. Como o Fantasma, aquele personagem dos quadrinhos, amigo dos pigmeus africanos, que se tornou eterno por sempre ter um filho de prontidão, Nazi deixou sucessor, Adoniran, e sua meladinha continua de pé, derrubando bêbados no centro da cidade, e ainda recebendo visitas ilustres diariamente, das 11 às 14, das 17 às 20 horas.
Bares e restaurantes tomaram o Beco da Lama, a Princesa Isabel e todas as adjacências do Grande Ponto, e, dessas adjacências, fazem sua nova história, que é a história continuada do Grande Ponto como praça de alimentação, lamentação e farra, festa.
Dentre os mais boêmios, o Caixa de Fósforos, na Princesa Isabel; o Bar de Aluísio, em frente ao Hotel Sol, na Heitor Carrilho; Odete, Fátima, Panela Velha, Major, no Beco da Lama; Neide, na Gonçalves Lêdo; Pedro Catombo, na Vigário Bartolomeu; Zé Reeira, ou Cinderela, como queiram, A Cantina do João, na Heitor Carrilho; Nazaré, na Coronel Cascudo, ponto obrigatório das tardes de sábados e todos os dias nos horários nobres.
O Grande Ponto político também não morreu: ainda é palco das esquerdas potiguares. É lá que PT, PSTU, PCdoB e CUT e sindicatos fazem suas mais expressivas manifestações. É, ainda lá, que todos os partidos concentram militantes em final de campanhas eleitorais.
É também o Grande Ponto, digo, adjacências do Grande Ponto, onde sobrevive a alma da boemia natalense, com seus poetas, artistas plásticos, músicos, jornalistas, militantes de todas as causas e bandeiras.
E, para não faltar à tradição da cidade, no Grande Ponto ainda existem turcos exploradores e vorazes, destruindo nossa economia e construindo seus impérios.
Cito Pedro Abech, o bodegueiro que ressurgiu das cinzas, invadindo a calçada sul do Beco da Lama com suas mesas e cadeiras. É nesse novo templo da cidade, a céu aberto e abrigo da marquise dos fundos da Insinuante, tendo como vizinhos o sapateiro Vavá, cartomante e padre, que Pedrinho realiza, sem tirar uma prata do bolso, belas e concorridas festas, cujo tema de comemoração é único: o Beco da Lama, pai de todo o Grande Ponto, já que pai de todos os becos.
No bar do turco, você encontra, em convívio harmônico, as militâncias de PT, PSTU e PCdoBeco - por ser do Beco e do Grande Ponto -, os primeiros com sedes nas adjacências. Nunca se ouviu estórias de tapas entre eles. De beijos, sim. Os socos e pontapés ficam para suas festas mais íntimas, mas, como me ensinou papai, aceitando conselho de Álvaro Moreyra: “as amargas, não!”
A este santuário maravilhoso de resistência, convergem os manuseadores de sebos, os artistas da cidade, os amantes da noite. Ali, todas as noites, duelos verbais são travados em mesa única, porque, em Pedrinho, apesar de tantas mesas, todos conhecem todos e a fraternidade existe, insofismável.
Tanto, que o Beco e suas adjacências, incluindo o Grande Ponto, são guardados pela Samba – Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências; e abriga a Abela – Academia Fernando Kalon do Beco da Lama, com seus 111 pobres mortais.
Na retaguarda da noite, em Escadinha, birosca de lanches encravada em pleno calçadão da João Pessoa, em pleno Grande Ponto Djalma Maranhão, a partir das 23 horas começam a chegar com suas próprias cadeiras os Pastoradores da Estrela Manhã, um grupo generalado por Joanilo de Paula Rêgo, Guaraci Picado e Cabral, que fica no bate-bola ameno (?) e a seco até altas horas da madrugada, como se a dizer que a Universidade Aberta do Grande Ponto ainda é viva, e, como tal, está a cumprir seu papel de sentinela atenta, mantendo indormido o Grande Ponto, que não pode dormir – apesar do esquecimento.
Quem viveu e vive o Grande Ponto, sabe o que significou e significa para a cidade o seu eterno coração. Quanto resgate ainda a ser feito! Quantas almas maravilhosas essa cidade gestou em passagens pelo Grande Ponto, esse Grande Ponto coração safenado, é verdade, cateterizado, enfartado, cansado e lacrimejante, mas ainda vivo, atuante e amado!







POESIA



Memorial do Grande Ponto
Celso da Silveira

Os bares do Grande Ponto
tenho os seus nomes de cor:
Botijinha, Dia-e-Noite,
Acácia Bar, Rio Grande,
Onde a cachaça de Ovídio
Dessendentava a goela
De Evaristo e Babuá.
Confeitarias - um par:
A Helvética e a Cisne;
Casa Vesúvio - bazar,
e adiante o Natal Clube,
Santa Cruz Futebol Clube
- os dois de primeiro andar.

Cafés Maia e São Luís,
Sorvete do Aracati,
Restaurante Dois-Amigos
com porta de vai-e-vem
e freqüência popular.
E Restaurante Acapulco,
local a que acorriam
Casais da sociedade
E rapazes bem trajados,
Todos lá fazendo hora
Para o baile do Aéro
- requinte/mor da cidade.

Numa esquina, a Alcazar
E na outra o Grande Ponto
- casa de jogos de azar -
um verdadeiro universo
de Tubiba à Mulamanca,
pro poeta fazer verso
como faz Milton Siqueira.

Lá, o Bolero servia
comidas de pratos quentes,
mas, já do lado de cá,
junto do Beco da Lama,
o Pérola vendia bifes
aos habitantes da noite
que voltavam dos bordéis
pra saciar outras fomes.

Lembrança de João Machado
Rutiquiano e Ercilo
(que foram ali quase Reis);
Sorveteria Cruzeiro
e do Salão Santo Antônio;
cigarreira O Zepelim,
que vendia bugigangas
e tinha o jornal/mural
onde "seu" Luiz Cortez
dava notícias do mundo
como que em primeira mão.
Juizes, advogados,
até desembargadores
e muitos aposentados,
recrutas e general
Leitão, Liliu do bilhar,
todo pessoal letrado
- são sombras na paisagem;
foi lá que estreou veado
um tal de Velocidade,
contraste de Tororomba.

Conversas de futebol
de torcedores e atletas,
cada um é melhor técnico
do América ou ABC,
Riachuelo e Atlético,
E o grito marcando gol
Está na boca de todos.

Carnaval na João Pessoa,
Deblechem vem de rei momo
ao lado de Zé Areia
e Djalma Maranhão;
se batalham de confete
e lança-perfume Rodo.
Papangus e colombinas
no toque da banda ao vivo
dançam ao som do "Zé Pereira"

Luís Tavares, de linho
LS-120
sapatos de duas cores,
bico fino de camurça,
ou couro de jacaré,
ditava a moda da praça
e ainda dava de graça
seu jeito de meninão.

Sorveteria Polar
(pianista Paulo Lyra)
onde se falava inglês
- "US Navy, my friend" -
de Aparício Meneses
ao engraxate da casa,
no tempo do americano.
O primeiro telefone
de serventia do povo
(nosso orelhão de outrora)
- "basta pagar e ligar" -
ficava numa cabine
toda vedada de vidro,
na antiga Casa Royal,
onde os segredos guardados
não coravam as namoradas.

É um espaço em aberto
à gente de toda parte;
convergência da cidade,
encontro de viajantes
e de onde as línguas feriam
moças vindas dos cinemas
Rex, Nordeste, Rio Grande,
Ou mesmo, quando mais cedo,
Retornavam das novenas.

Centro referencial
de política e cultura,
de oposição e governo;
a palavra ali falada
no palanque dos comícios
ganharam tal ressonância
que nos seus cantos ecoam,
não, grande ponto final
- leve som de antigamente -
reticência, ponto e vírgula,
mas, ocasionalmente,
exclamação, coisa e tal,
força lúdica, dominante
deste seu memorial
05.05.83
Editora Clima - 1983



Toadilha para o Grande Ponto
J. Charlier Fernandes

Grande Ponto
Grande porto: solo-mistério
decifrado
por homens e gestos
Formas e acenos

Pouco há em ti
de sonho ou de aventura
porque és o

espaço da loucura
(loucura entanto coarctada
por sua voz, ritual e canto
e sudários incensados
no teu paço de candura).

Grande Ponto
Grande porto
orbe liberto do tempo:
sendo um pouco o teu retrato
(com a minha alma fechada)
eco de tuas vivências
(com o meu sossego calado)
por que assim avassalas
no teu chão de confidências?

In Poesia Viva de Natal, Manoel Onofre Jr.
Fundação Capitania das Artes/Nordeste Editora, 1999






Grande Ponto
Franco Jasielo

O relativo inexiste de esquina a esquina.
Há o evidente certo lúdico límpido absoluto.

Jaquetões gravatas finas juizes sapatos espelhados
poema-processo trovas café pitombas quase
deputados

O passado resiste valente nas próteses dentárias
nas estenoses dialéticas de duras coronárias.

Secretamente divulgam-se assuntos reservados.
A multidão é íntima de senadores e generais.

Nascente fulcro catedral umbigo do intelecto
verso de mimeógrafo contra bimbalhar de sinos.

Os bares e os poetas foram demolidos.
A fofoca legítima fugiu para os jornais.

In Correspondência atrasada, Franco M. Jasielo, Fundação José Augusto, 1985.





Notícias do Grande Ponto
Nei Leandro de Castro

João Pessoa, Princesa Isabel
e Rio Branco se juntavam ali,
como todo mundo,
pra falar mal da vida alheia.
- Fulano deu pra fulano.
- Essa aí dá muito mais
do que paca de mão branca
em noite de lua cheia.
- Sabe quem anda chupando?
- Beltrano é corno e não sabe.
- Ora não sabe. Ele gosta.
- O Doutor deu um desfalque
e fugiu com a amante.
Indiferente aos murmúrios,
o menino roubava chocolates
da confeitaria antiga,
espiava os sorvetes
exibidos na Cruzeiro,
tomava carapinhada,
torcia pelo América
via os matinês do Rex,
tentava pegar nos peitos
da primeira namorada,
sonhava ganhar dinheiro
e comprar todos os sonhos
de valsa que ele roubava.

Um dia o adolescente
quase morre ledamente
afogado num pileque
monumental no Bar Cisne,
O cafezinho ao lado
às vezes queimava a língua
de quem falava demais.

Os copos de Cuba Libre
se levantavam no ar
contra a invasão dos marines.
Os políticos da província
do alto dos seus palanques
prometiam tudo, até
a independência do Reino
Unido do Grande do Ponto.

Às onze horas da noite
João Pessoa, Princesa Isabel
E Rio Branco trocavam
um cordial boa-noite
e prometiam voltar
na manhã do outro dia
a falar da vida alheia.

In Poesia Viva de Natal, Manoel Onofre Jr.
Fundação Capitania das Artes/Nordeste Editora, 1999




O Alto das Gameleiras
Eduardo Alexandre

CANTÕES,
COCADAS
GRANDE PONTO DJALMA MARANHÃO
POETA-PREFEITO

POEMAS, ESCREVIVÊNCIAS
CRÔNICAS, FATOS, GENTE
DO GRANDE PONTO

EFERVO MEMORIAL MOMENTO

QUINTAL
DA RUA DAS PALHAS
DO GALO
E DOS SINOS
FUNDOS DA MATRIZ
NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO

IGREJA DE PRETOS
ROSÁRIO
PELOURINHO
RUA DA CONCEIÇÃO
PRAÇA VERMELHA
DA IMPRENSA
DO BURBURINHO
DO BOATO
AFETO
DESAFETOS
CONFIRMAÇÕES

CHÃO DE ENCONTRO
DE ESPERA
DE VIGÍLIA
ALTO DAS GAMELEIRAS

ONDE SURGIU A CIDADE
XARIA
QUE FEZ A RIBEIRA
CANGULEIRA
PARA CRIAR
CIDADE ALTA

CHÃO DE BOIS BUMBÁS
BECO
DO BECO DA LAMA

CAFÉ MAIA
SÃO LUIZ, “100% PURO”
CASA COMERCIAL
TRIBUNA LIVRE
MERCADO DE MUITOS
FEIRA
FALÁCIA
ARENA
DE LÍNGUAS E BRAÇOS
BOEMIA
ABRAÇO
CASCUDO
ÁGORA
ACRÓPOLE
VATICANO
CINE REX
NORDESTE
RIO GRANDE
CONFEITARIA CISNE
HELVÉTICA
CASA VESÚVIO

MAIORANA
JOÃO MACHADO
FORMOSA SÍRIA
DUAS AMÉRICAS
NAÇÕES UNIDAS
NOVO CONTINENTE
SORVETERIA CRUZEIRO
GLACIAL
POLAR
4.400
LOBRÁS

DUCAL
KI SHOW
JAECY
PRAÇA PIO X
NOVA CATEDRAL
CENTRO CEARENSE
BANCOS
EDIFÍCIO 21 DE MARÇO
VELHO MERCADO, FOGO DA CIDADE
BOTICAS
BOTIJAS
ITAJUBÁ

NAVARRO
BERILO
DORIAN
CELSO
LUÍS G.M. BEZERRA
SANDERSON

ZÉ AMÉRICO
MILTON SIQUEIRA
CAMBRAIA
MULAMANCA
TUBIBA
O RATO

A BURRA DO PADRE
O PADRE
SANTÍSSIMO JOÃO MARIA
PROTETOR DAS ALMAS DO BECO

A LAMA
A CAMA
AMORES

CAMELÔS
INSTITUTO HISTÓRICO
ASSEMBLÉIA
PRAÇA SETE
PALÁCIO DO GOVERNO
PREFEITURA
CHAPINHA
QG DA ID-7
GALERIA METROPOLITANA
CADÊ?
CASA DO ESTUDANTE
LIGA ARTÍSTICO OPERÁRIA
TÊ BARRETO
CASA LUX
LOJAS SETA
UNIÃO
SALMAR EM CHAMAS
RUA DAS PALHAS
VIGÁRIO BARTOLOMEU
NAZI
PIXINGUINHA
JARDS MACALÉ
MAINHA

ODETE
NAZARÉ
PEDRO ABECH
CABRITO
PRESIDENTE DE ACADEMIA
KALON

CEBARROS
GALERIA OLÍMPIO
NATAL CLUBE
CARNAVAIS
FESTEJOS JUNINOS
NOITES DE NATAL

EDIFÍCIO AMARO MESQUITA
SAMBA
FARMÁCIAS, ESQUINAS
RUA SARMENTO,
VISCONDE DE INHOMERIM
PEDRO VELHO
JOÃO PESSOA
ESCADINHA
C & A
AMERICANAS
INSINUANTE
CIGARREIRA TIO PATINHAS
LAÉRCIO
SÃO CRISTÓVÃO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TRE
GRÁFICAS
PANFLETOS

RIO BRANCO
RUA NOVA
PRINCESA ISABEL
RUA DOS TOCOS
CENTRO
BONDES
ÔNIBUS
POLUIÇÃO
CRESCIMENTO
SEMÁFOROS
NOVOS HÁBITOS
AINDA CORAÇÃO
DA CIDADE
NATAL

Natal, 27 de outubro de 2002



Embalos de violas para Clarimundo
(Fragmento)
Newton Navarro

Trinta cordas de agonia
Trinta tons de sentimento
Minha garganta vazia
Não tem versos
Não tem rimas
Para dizer o meu tormento.

Trinta cordas de violas,
Trinta choros de instrumento
Que me valham céus e terra
Com seus fortes elementos
Pra chorar a Clarimundo
Adormecido na morte
Após tanto sofrimento.

Trinta sons de desêspero
Trinta nomes de silêncio
Pra consolar êsse moço
Que cantou pra tanta gente
E jaz agora por terra
Solitario e sem descanso
Com todo o peito cortado
E o coração desolado
De tanto padecimento.

Trinta bordões enflorados
Com cravos de roxa cor,
Trinta primas afinadas
rimando secretamente
nossa mágoa e sua dor.

Acendam-se madrugadas
Como círios em redor,
Porque sem luz esses olhos
Não podem vagar tão sós.
Para o céu há tanto espaço,
Como poderá alcançá-lo
Se no rosto há tanto pó?

Trinta estrêlas matutinas
Seu rosto devem velar.
Trinta fontes de águas claras
Seus olhos devem lavar.
Trinta violas sonoras
A sua alma serenar.
E um anjo feito sereno
Aos céus sua alma levar...

Natal, 8 de Novembro de 1955






CANTÕES, COCADAS, GRANDE PONTO DJALMA MARANHÃO

SUMÁRIO

Dedicatória ....................................................................................................
História da Cidade do Natal - Deífilo Gurgel................................................
Apresentação...................................................................................................
Natal - Uma pitada de História - José Alexandre Odilon Garcia....................
Natal dos Idos 40 - José Alexandre Odilon Garcia.........................................
Rua Sarmento, esquina da Rua Nova, 27 de novembro de 1845 - Newton Machado Wanderley...........................................................................
A cidade do Natal – Luís da Câmara Cascudo.............................................
Os Cantões – João Gothardo Dantas Emerenciano......................................
À sombra de frondosas árvores, os cantões – Antônio Fagundes
O carnaval na Rua da Palha – Umberto Peregrino
Grande Ponto - Luís da Câmara Cascudo.....................................................
O ontem do meu tempo no Grande Ponto - Odilon de Amorim Garcia.......
O Grande Ponto - Manoel Procópio de Moura Júnior..................................
Grande Ponto Djalma Maranhão - Marcos Maranhão..................................
O impeachment do prefeito – Mailde Pinto....................................................
Era uma vez um homem - Clara de Góes........................................................
Lembranças do Grande Ponto - Moacyr de Góes.........................................
Grande Ponto, 1960 - Os passeios de elevador, escada rolante e os malditos militares que mataram Silton - Petit das Virgens......................
Fragmentos do Grande Ponto – Luciano de Almeida...................................
Escola de Sagres – Vicente Serejo................................................................
Território do menino e do homem - Ticiano Duarte.....................................
O Clube, o Treze e o Galo - José Melquíades..............................................
O Grande Ponto à meia-noite - Joanilo de Paula Rêgo................................
Cinco pequenas evocações de um ponto que era grande – Cláudio Galvão......
O "Grande Ponto" - Lauro Pinto...................................................................
O Mito do Grande Ponto - Miranda Sá.........................................................
Um ponto que era grande - Leonardo Sodré.................................................
O espírito de Natal - Casciano Vidal.............................................................
A geração das Cocadas - Falves Silva...........................................................
Grande Ponto, 22 de novembro de 1963 - Talvani Guedes da Fonseca........
A velha Confeitaria Cisne - Protásio Melo...................................................
João Machado – Augusto Severo Neto.........................................................
Geografia sentimental do Grande Ponto - José Maria Guilherme................
O Grande Ponto de todos os tempos - Ubirajara Macedo.............................
O Novo Continente - Graco Medeiros..........................................................
Calçada do Café São Luiz - Eugênio Neto...................................................
O Grande Ponto existe? - José Luiz Silva....................................................
O Grande Ponto não mais existe – Helmut Cândido....................................
O Grande Ponto - Manoel Onofre Jr. ..........................................................
Uma Ágora chamada "Cocadas" - Inácio Magalhães de Sena.....................
Sociologia do Grande Ponto - Raimundo Nunes............................................
Grande Ponto? - Pe. Agustin Juan Calatayud y Salom..................................
Faces do Grande Ponto - Alexandro Gurgel...................................................
Fatos da minha memória - Raquel Alves de Sousa.........................................
O Grande Ponto do amanhã - Franklin Serrão................................................
As feridas expostas do velho centro - Ana Cristina Cavalcanti Tinôco.........
Coração da cidade amada - Eduardo Alexandre de Amorim Garcia..............
Memorial do Grande Ponto - Celso da Silveira...........................................................................
Toadilha para o Grande Ponto - J. Charlier Fernandes................................................................
Grande Ponto - Franco Jasielo.....................................................................................................
Notícias do Grande Ponto - Nei Leandro de Castro....................................................................
O Alto das Gameleiras - Eduardo Alexandre................................................................
Embalos de violas para Clarimundo - Newton Navarro





CONTRACAPA



Rua Sarmento, esquina da Rua Nova, 27 de novembro de 1845

Mas Zacarias era um negro doido e ninguém dá bola para um negro doido!
E Zacarias dizia que a rua não duraria muito com o nome de Sarmento, o homem que mandou abrir o mato. Quem vai querer vir morar aqui? Eu mesmo, quando casar, vou montar minha casa na Ribeira.
E, não sei porque, ele passou bem uma hora resmungando: Inhomerim! Inhomerim! Eu sei lá o que significa isso! E depois dizia: Pedro Soares! Pedro Soares! E virava para mim e dizia que iam mudar Pedro Soares para “as bandas do morro”.
Eu, que não sei quem é Pedro Soares, não o imagino fazendo o quê, pelas bandas lá do morro. Ele quer ser devorado por algum Potiguar ainda renitente, diabos?
O negro contava a estória de um presidente que seria assassinado, gerando muita comoção. Um presidente da Paraíba, mas que teria repercussão ali, na rua Sarmento que ele ajudava a abrir.
E dizia que nada seria mais importante que o lugar onde derrubava o cajueiro grande. Dizia que ali seria um ponto, um grande ponto, onde um português montaria um café, na frente do qual um instrumento estranho emitiria notícias de uma guerra espalhada pelo mundo, razão pela qual metade da população da cidade falava um idioma que ele dizia não entender.
Dizia que dali partiria para uma grande luta um administrador da cidade, que iria cuidar de fazer com que os meninos aprendessem a ler, mas que seria muito injustiçado, morrendo muito longe do seu chão. Que esse administrador seria finalmente reconhecido e que voltaria a vagar por aqui, pela eternidade, de pés no chão.